Quinta-feira, 11 de Abril de 2013

Contra nós temos os dias

Contra nós temos os dias, já o sabemos. São turvos, desconfiados, mil variantes de uma base cor de cinza.

Contra nós temos a tristeza, o desalento que nos morde, a indignação que nos tolda e faz errar. A proximidade do drama do quotidiano, que com violência sai dos noticiários e nos bate à porta: é o nosso amigo, é a nossa família, é o outro a quem nunca prestámos antes atenção que agora é a nossa vida e a nossa ajuda, a boa acção que nunca pensámos fazer. Somos nós.

 

Contra nós, a realidade.

Mas: e a nosso favor? Apenas nós mesmos e a criatura mais mítica que produzimos: a palavra, essa impossibilidade linda. Como nunca, ela está à solta e como sempre, não irá salvar ninguém. Mas ajuda, galvaniza, transmite. Faz lutar, acreditar na perseverança (e notai que evito ‘esperança’).

 

Não acredito que haja lugares onde as palavras devam estar, e muito menos que esse lugar seja a rua. Acredito que devam estar libertas para poderem passar por onde quiserem – num olhar, num prelúdio de um beijo, num livro, no feliz próximo verso do poeta, na voz de uma canção – mas por feitio e convicção sei que a rua tende a retirar das palavras a sua inutilidade para depois definharem lentamente. Os lemas revolucionários são sempre melhores do que as próprias revoluções, como nos ensinou a história. Algumas vezes são a única coisa verdadeiramente relevante, como aconteceu com os famosos slogans do « Maio de 68». 

 

É sempre bom passear pela cidade e depararmos com a surpresa de uma boa frase eternizada numa parede por autor anónimo. Mas não chega, não serve. Se as palavras hoje vivem muito na rua é porque a rua precisa delas – o que não quer dizer que se façam ouvir e muitas vezes que façam até sentido. Há excesso de verbos e poucos substantivos nos nossos dias, uma libertação súbita e compreensível mas que apenas ajuda a dividir. A palavra pela palavra e a rua pela rua ainda valem menos do que valem realmente.

 

Temos de tratar com parcimónia estes bichos que criámos, «animais doentes as palavras», como escreveu O’Neill. Temos de as aconchegar na alma e soltá-las da forma mais agarrada possível à verdade daquilo que estamos a sentir.  E isso, hoje, é difícil. Contra nós temos os dias.

Mais do que nunca, «entre nós e as palavras há metal fundente» (Cesariny). Mas o destino e habitat natural das palavras é o silêncio, onde melhor coincidem com o que queremos dizer. Talvez o silêncio das acções seja agora a forma de lutarmos contra a realidade. E porque há sempre quem tenha escrito mais e melhor, socorro-me outra vez e com topete das palavras de O’Neill «Para dizer/ Queria palavras tão reais como chamas/ E tão precárias / Palavras que vivessem só o tempo de dizer a sua parte / No discurso de fogo».

Aqui termino, falho e farto de palavras.

 

 

 

[texto escrito para o jornal que acompanha o evento Lisboa Capital República Popular, a ter lugar este Abril. O tema deste ano é 'A palavra está na rua']

 

publicado por Nuno Miguel Guedes às 08:23
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