Quem tem de escrever regulramente, por gosto ou profissão, sabe bem que mais vezes do que o desejado a vida entra pelas palavras dentro e fecha-as num redil chamado quotidiano. E quando este bicho é feio, a agrafia é inevitável e até, quem sabe, desejável. É como quando se está muito feliz ou muito triste: temos mais do que fazer do que perder tempo a colocar frases por ordem, pura e simplesmente porque estamos ocupados a viver. Sempre que se escreve, aquilo que verdadeiramente queremos dizer morre um pouco. É por isso que o desafio é tão utópico como necessário.
Também eu não sou excepção e os dentes afiados da realidade ameaçam morder todos os dias, parando inevitavelmente qualquer veleidade criativa. Mas a vida é maravilhosa sobretudo nas suas ironias; e foi há dias, que entre duas cartas das Finanças (quem disse que já ninguém escreve a ninguém?) deparei com esta espantosa notícia:um grupo de génios (pagos, espero eu) conseguiram descortinar como era o universo 380.000 anos depois do Big Bang (vejam aqui: http://www.publico.pt/ciencia/noticia/este-e-o-mapa-mais-detalhado-de-como-era-o-universo-com-380-mil-anos-1588599 ). Vemos uma espécie de planisfério (que reduz a cinzas a infinitude do Universo) e uma série de manchas que identificam zonas quentes e frias. Mais ainda, para que todos fiquemos descansados, os cientistas concluiram que este «ovo cósmico» em que vivemos seria mais cem milhões de anos mais velho do que pensávamos. Todos nós os que perdemos noites a pensar na idade do universo ( e somos tantos que eu sei), suspirámos de alívio.
Se até aqui chegaram, por favor não me interpretem mal. Acho bem e mandatório que se estudem estas matérias.Mas francamente, e se conseguir evitar a tentação de lançar a piada que isto é uma conspiração para dar bom nome à astrologia (desculpem, não consegui evitar), não consigo vislumbrar como isto afecta as nossas vidas. Se me falassem de hoje; do futuro e de quando a coisa vai acabar para não apanhar ninguém sem uma roupinha lavada - isso eu percebo e interesso-me. Agora quando vejo um planisfério universal em que só me apetece actualizar o Tratado de Tordesilhas (Merkel fica com as zonas frias, todos os outros salvem-se como puderem) não posso deixar de reclamar que saber outras coisas dava mais jeito. Por exemplo: como se explica o hoje? Como nos safamos? Há planisférios cósmicos que eu possa apresentar na Segurança Social? Isso é que era:«está a ver esta zona fria e todo este processo universal que se desenrola apesar de si, simpático funcionário da Autoridade Tributária?», diria eu. «Vê a nossa dimensão, pó entre o pó galactico? Então para que serve pagar essa divida, se a expansão universal vai dar cabo de tudo?». Francamente, um mapa do hoje e do futuro do universo é que daria jeito. Toda a gente reconheceria a sua verdadeira escala (enfim, Relvas é um caso à parte mas não imune) e todos os dias seriam reduzidos ao tempo a que temos de estar gratos.
E aí sim, aproveitaríamos cada olhar, cada beijo, cada gesto, cada verso, cada memória, cada beleza,cada tristeza, cada ser humano na sua justa medida. Todos os instantes para serem sorvidos antes que a coisa feche. E não interessa que possa demorar milhões de anos: a nossa vantagem enquanto bichos humanos é que não houve nem nunca haverá mapa nenhum que nos cartografe os afectos.Eles que tentem.
É bastante provável que neste preciso momento seja o último dos cidadãos a falar, escrever, alvitrar ou comentar a forma de indignação mais utilizada nos últimos tempos em Portugal: o regresso do programa A Tua Cara Não Me É Estranha.
Minto, pronto, piadinha fraca para sacudir o desconforto. Trata-se, evidentemente, da utilização do Grândola, Vila Morena como instrumento de combate político, interrompendo discursos ou funções públicas dos nossos bem-amados governantes.
É uma excelente ideia, devo dizer. Todas as canções têm uma função e as de combate são mesmo para ser usadas. O Grândola.. parece-me uma escolha evidente e eficaz - excepto quando o coro que protesta desafina em demasia ou o ministro Miguel Relvas se junta à cantoria.
A questão de fazer da canção um hino já não me diz tanto. Prefiro a guerrilha, a performance. Mas como bem viu quem esteve na rua no passado dia 2, a coisa arrepia. E foi bem escolhida: podemos não ter concordado com as posições políticas do seu autor (algumas de um radicalismo e intolerãncia delirante) mas não lhe podemos negar o génio. Digamos, apenas por analogia, que o Sonho de Menino dificilmente obteria os mesmos resultados.E o facto de a canção ter sido um dos sinais para a liberdade é transversal e actual.
O poder das canções de combate é incomensurável e prático. Desde a literalíssima A Cantiga É Uma Arma até o protesto dançável de Free Nelson Mandela, dos Specials, vai um mundo de intenções e vontades concretas mas que começavam e acabavam onde eram ouvidas. O que mais me maravilha nesta recuperação do tema de José Afonso é a sua utilização no terreno, servindo para interromper com força e elegância uma voz que não faz sentido.
Tanto eu gostei da ideia que gostaria de aplicá-la ao meus dias e ao que sinto. Esta é a minha utopia, senhoras e senhores: um tipo está só, lamentando os lados maus da vida - falta de dinheiro, de emprego, amores que se perderam - e começa a abandonar-se aos pensamentos mais tristes. Nessa altura - zás! - um coro vindo de dentro do coração começa a gritar o Grandola Vila Morena para evitar que um gajo se arme em parvo. Um grupo convicto de micro-seres, teimosos e decididos a calar as inanidades que nos vêm à cabeça para recomeçar com a vidinha, que não há tempo a perder.
Dava tanto jeito. Mais do que aqueles bombeiros que se vêem num reclame qualquer e que surgem para apagar as más digestões. A sério: grandolar o coração evitava perdas de tempo e, no limite, textos como este. Quem sabe, pode ser que um dia ainda oiça cá dentro os famosos passos com que a canção começa. Até lá, só o silêncio e o eco estúpido de mim próprio.
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