Segunda-feira, 11 de Fevereiro de 2013

Metafísica do Metro

Quando atravessamos alturas na nossa vida em que o Busque amor novas artes, novo engenho parece abocanhar os nossos dias e alimentar-se deles, tornamo-nos filósofos das pequenas coisas. É inevitável. Pensar – lembrar- torna-nos tristes mas o impensável é que não é alternativa.

 

As pequenas coisas. Uma viagem no metro, por exemplo. Percorrer um caminho mil vezes percorrido, previsível como os carris que o sustentam, sem surpresas até mesmo nos rostos e nos farrapos de conversas que se atravessam à nossa frente. E de súbito, uma voz anónima, vinda não se sabe de que céu da carruagem, a oferecer-nos o pedaço de sabedoria que tudo encaixa e faz redimir, como se alguém soubesse que ali estamos: «Atenção ao intervalo entre o cais e o comboio».

 

E é isso, é exactamente isso. Esse intervalo entre uma partida e um regresso, entre a viagem e o porto. Desejamos entrar no comboio ou sair dele mas nunca nos lembramos que o intervalo existe: o intervalo em que acontecem os erros e as alegrias, em que sinceramente nos iludimos com momentos e pessoas que julgamos terem horizontes mas que afinal medem a vida em colheres de café (deixa-me em paz, Poeta!); o intervalo em que todos os afectos e todas as certezas podem ser abalados mas também ganhos; o intervalo em que o tempo não interessa, apenas a vontade; o intervalo escuro com promessa de luz e tantas vezes ao contrário.

 

Entre uma viagem e outra, muito do que nós somos está nesse intervalo. Muito do que perdemos e muito do que ganhamos também. O que queremos sobrevive a essa pausa vivida.O que nos ama realmente, também. Nem comboio nem cais fariam sentido sem este intervalo. Sábias palavras, ó Deus dos Transportes Subterrâneos. Não dei atenção ao intervalo – ou iludi-me com ele – e ia perdendo a viagem e o cais. Agora não. Não há pressa. Sento-me tranquilamente no banco do Acaso, à espera que chegue a nova carruagem, o novo cais.

publicado por Nuno Miguel Guedes às 17:28
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A Revolução da Esperança

 

Há esta certeza que faz falta proclamar: Manuel Fúria é um subversivo. Melhor ainda: um subversivo com uma missão. Acredita e pratica o que louva - valores e actos que, mais do que anacrónicos, são mal vistos pelo espírito deste tempo. Utiliza sem medo palavras como «pátria», «amor», caridade», «coração», «bondade», «rei», «fé», «rapariga», «noiva», «Cristo», «contemplação», «mistério», «alma». Para ele, tudo se poderia resumir num único vocábulo indizível que tem urgência de partilhar. E essa urgência é a razão de ser da sua arte e da extrema necessidade de fazer.

 

«Quero ver Lisboa a arder», anuncia ele no início da nova aventura-manifesto que é este disco, Manuel Fúria contempla os lírios do campo. A referência bíblica, para além de assumida, assalta-nos por uma estranha beleza proselitista, apenas porque pressentimos que ele crê sinceramente e isso é tão raro. O que seduz de imediato na arte e na personalidade do Manuel Fúria (e aqui chegados, permiti que o que assina estas linhas se intrometa ainda mais pessoalmente nesta conversa e confesse a sua amizade) é que tanto numa como noutra a verdade não se sobrepõe à sinceridade: valem o mesmo, e são indissociáveis. Outros criadores ou interpretes são genuinamente sinceros no momento em que transmitem sentimentos  ou intenções, para depois os abandonarem; Fúria é verdadeiro, de uma forma absolutamente sincera.

 

Assim, rodeado de cúmplices de excelência que não por acaso se intitulam de Náufragos (na eterna espera, numa eterna deriva, numa angustiante liberdade), Manuel Fúria canta aquilo em que acredita,  lamenta o que se perdeu mas reclama a possibilidade da esperança. O que esta colecção de cantigas sugere é uma visão de um mundo límpido e espiritual, onde o essencial é possível, e que esse mundo poderia começar em Portugal. Infelizmente, e como chegou a dizer numa entrevista, « Portugal ainda não é».Esta ontologia de Portugal teria assim de partir de um reino de amor e de festa. Se existem tentações - a cidade como Babilónia é assumida logo em Estandarte e lembrou-me uma das minhas passagens bíblicas preferidas:"Não deixes errar os olhos pelas ruas da cidade nem vagueies por seus lugares solitários" (Sir, 9, 7)  - todas serão vencidas pelo Amor e pela Festa (Que Haja Festa Não Sei Onde). Desenganem-se no entanto aqueles que esperam um conjunto de homilias musicadas: este disco está infectado de pop por todos os tempos e todos os temas, que se ouvem, com sinais ostensivos de quem sabe como se faz uma canção e como usá-la.

 

Quem, como eu, assistiu aos rótulos fáceis e injuriosos colocados a um grupo de música moderna no principio dos anos 80  - sim, os Heróis do Mar e sim, uma das inspirações confessas de Fúria - sabe como poderia ser tentador arrumar esta arte numa gavetinha ideológica. Mas felizmente os tempos mudaram e maravilhosamente permitem que a obra de Fúria se revista de uma contemporaneidade (e a perenidade possível na pop) que não oferece dúvidas. Manuel Fúria é um incansável fazedor que embora descontente com o tempo a que pertence exige mostrá-lo com as armas que estes dias lhe dão. A prova - para além da sua música - está na editora Amor Fúria, que tal como a sua quase irmã Flor Caveira, sabem como dizer o que querem dizer. E que é muito e é preciso.

 

Antes de terminar, uma palavra para os músicos que participam no disco, quase todos eles ligados a outras bandas ou iniciativas em nome próprio. Este é um espírito de partilha recente na música moderna portuguesa, impensável no dealbar da década de 80, e que agora surge naturalmente graças a uma nova mentalidade. A saudável promiscuidade artística que pequenas editoras como a Amor Fúria ou a Flor Caveira apresentam são indícios de tempos novos, longe da ideia paroquial de «o meu talento é único e não o divido com ninguém».

Depois da caminhada que fez com Os Golpes, em que tantas vezes foi reduzido a um reflexo voluntário de algo que já foi feito, Manuel Fúria precisava de um disco assim. Onde a sua voz e a sua alma esteja solta como ele gosta: em partilha. Amanhã? Não sei. Como ele, contento-me com hoje e remeto-me à mesma fonte e origem de todos os desafios: «Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã já terá as suas preocupações»(Mt, 6, 34).

 

É urgente alistarmo-nos nesta Revolução da Esperança.

 

*texto escrito para acompanhar o lançamento do disco Manuel Fúria contempla os lírios do campo

publicado por Nuno Miguel Guedes às 10:02
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