Eis o aviso, ó posteridade: de repente, a certa altura na vida de um ser humano do sexo masculino criado sob a matriz judaico-cristã, alguém vai prever, constatar, confirmar: «Isso é da crise da meia-idade».
Coisa maçadora, esta. Pressupõe um igualitarismo de comportamento que, como todos os igualitarismos, é abusivo; deixa em aberto o que se fala quando se fala de meia-idade; e sobretudo, irrita a presunção de que, sendo tudo isso hipoteticamente verdadeiro, a fase que se critica tenha de ser uma crise. Daquilo que eu deduzo dos estereótipos, não vejo crise, só opulência: fulano separou-se e namora uma rapariga linda com menos 20 anos do que ele: qual é a crise? A menos que haja infracções legais, só vejo alegria. Fulano quer ser jovem e comprou um magnífico descapotável de uma marca topo de gama. E? Tentei até este dia evitar citar Supertramp, mas não há remédio: crise? qual crise?
O que a meia-idade dá, na melhor das ambições, é sabedoria. Infelizmente, a maior parte de nós - em que me incluo - apenas pode aspirar a reconhecimento e gratidão. E já é tanto. Escrevo-vos depois de ter passado por isso, sem descapotáveis ou ninfetas envolvidas. Perceber que existe em cada minuto tanto para estar grato só vem com a vida agarrada. Numa só noite tive a dádiva da amizade reencontrada, da conversa evanescente que aquece o coração ao ponto da lágrima, do pormenor que só quem vive o suficiente pode agradecer. Olhares, silêncios, serenidade que apazigua sem receita nem remédio. Um fim de noite em que se é convidado a sair de um casino no meio de uma discussão sobre McLuhan; um amigo ausente que é intimado, à força de afectos, a estar presente. Um agente da polícia que sai do seu posto de trabalho e oferece o seu carro pessoal («cuidado com a cadeirinha da minha filha, peço desculpa») para ajudar um casal perdido a horas impróprias.
Eu sei o que vivemos, o que estamos todos a viver. Mas se a crise de meia-idade significar o reencontro com o que estava esquecido no melhor de nós, venha ela. Quem sabe ,qualquer dia até me converto em optimista. Até lá, continuarei a combater a realidade com a realidade.O desfecho desta luta só pode terminar bem.
Há alguns dias vi um homem chorar.
Podia ter sido numa manifestação, ou numa destas recentes catarses colectivas organizadas onde se lamenta e se protesta os dias que correm. Podia ter sido num funeral. Podia ter sido um indigente, à mercê do amor de ocasião.
Nada disso. O que rodeava este homem, de cabelos grisalhos e olhos cinzento-avermelhado era uma atmosfera de festa. Uma conjuntura improvável para algo raríssimo nestes dias: apresentar as lágrimas em público, perante estranhos e sem medo nem vergonha. De facto, com gratidão.
O cristianismo primitivo está cheio de apelos a essa água salgada que nos escorre dos olhos. As lágrimas, para os primeiros cristãos, sempre foram uma bênção que era necessário pedir. Algumas das mais belas e poéticas orações suplicam justamente pelo dom da lágrima. A natureza humana, na sua patética soberba, sempre se recusou a si própria: daí o recurso à intervenção divina.
O tempo, esse monstro por nós criado, tratou de anular o poder da lágrima. Sinal de fraqueza, de cobardia. Excesso de romantismo reservado a literatura histérica ou, mais recentemente, adaptado e difundido apenas como consequência de situações catastróficas ou dramáticas, de preferência com um directo televisivo às oito da noite.
O valor da lágrima – o dom de chorar – parece ter-se perdido para uma qualquer obrigação de sofrer ou rejubilar para dentro e em privado. Não choramos as nossas perdas – amores, mortes – quando elas acontecem e como deveríamos fazê-lo. Preferimos o luto civilizado na ilusão de que tudo dói menos. Mas dói e não passa. Desconfiamos dos adultos que choram ao ver um filme ou se sentem atingidos por uma canção. Toleramos o choro dos outros, com o insuportável paternalismo e relação de poder que este verbo traz.. Mas tolerar é suportar.E suportar não é respeitar, que é algo que obriga a uma atitude de olhos nos olhos, de igual para igual.
As lágrimas, sobretudo se vertidas em público, incomodam. Subvertem, fazem-nos passar ao lado, interpelam-nos ao ponto de mudarmos de passeio como evitamos o bêbedo que sabemos que nos vai incomodar. As lágrimas despem-nos.
E sabendo isto, ver um homem, com cerca de sessenta anos, chorar no meio de um bar, no meio de um ambiente de festa desbragada. Não se está preparado para isso. Eu não estava, pelo menos. Consegui perguntar porquê, oferecer o consolo estúpido de quem não entende. O homem – um irlandês de meia idade, de férias em Portugal – respondeu naturalmente, com um sorriso já húmido:«Porque esta música [uma balada tradicional irlandesa] e vocês [portugueses] me fazem sentir em casa e com saudades de casa. Nunca senti nada assim. E ainda não bebi nada!» .As lágrimas corriam, já misturadas com o riso.
Acredito que as lágrimas são as jóias visíveis da alma. Acredito, mas não o pratico à vista de todos. Chorar é reduzirmo-nos ao pouco que somos no maior que poderemos ser, e é por isso que é tão difícil como necessário. Daí esta crónica surgir como pobre redenção, ao mesmo tempo que lembro a inveja e a lição que este homem me deu, e que me fez chorar com ele cantando o Wild Rover.
Parafraseando uma velha canção, a vida é a nossa festa e podemos chorar se quisermos. É tempo de querer, fazer e agradecer, sob pena de algo humano desaparecer de nós.
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