Sexta-feira, 29 de Abril de 2011

Mario em Ithaca

Uma série sobre o programa animal: comer, não ser comido e dar a comer

 

Quanto menor for o protagonismo, maior será o poder de observação. Aplicada a casamentos, esta simples regra produz um corolário que apenas é óbvio a posteriori: as piores testemunhas de um casamento são os noivos. Pela mesma lógica, os 2000 milhões que assistiram à transmissão televisiva da boda de William e Kate seriam os seus mais fiéis relatores, mas tal como a mecânica clássica deixa de funcionar para velocidades muito elevadas e tamanhos muito pequenos, também esta regra falha quando não se recebeu um convite. Daí que a recordação mais viva que guardo de casamentos é a daqueles a que fui como apêndice de alguém e de onde saí sem deixar outra marca que não fosse uma presença no álbum de fotografias que no futuro ninguém saberá explicar. Embora esta ausência de reciprocidade no peso que um tem na memória do outro seja terrível no amor e estereotipada no par ídolo-fã, dela podemos retirar algum gozo e identidade. William & Kate jamais terão na minha vida a importância do porto-riquenho Mario e isto não é uma afirmação de republicanismo, nem um sinal do complexo do homem branco.

 

Quando os meus amigos se estavam a casar pela primeira vez, o ritual passava por alugar uma quinta dos arredores de Lisboa. Dada a constância fisionómica dos lusitanos e a homogeneidade de gostos e tendências da classe média, o que resta hoje é uma lembrança que conglomerou todos os casamentos numa única quinta, num único casamento, em Maria, a conglomerada noiva, e numa única ressaca, felizmente de intensidade não cumulativa. Comecei depois a ir a casamentos no estrangeiro e ainda é cedo para saber se a lembrança destes envelhece melhor, não havendo até grandes motivos para assim pensar - se não se sai dos territórios da civilização ocidental, os casamentos variam mais com a condição social do que com a geografia. Mas como estes casamentos foram mais cosmopolitas do que o da quinta alugada do arredores de Lisboa, é natural que algum registe a combinação da minha falta de protagonismo com a presença de alguém tão excêntrico que só mesmo passando revista às quintas dos arredores de Lisboa que não se alugam esperaríamos dar com um exemplo à altura. 

 

Em 2007, desloquei-me à Argentina para o casamento do melhor amigo de um grande amigo meu. O melhor amigo do meu amigo fez dele um dos três padrinhos e o meu amigo fez de mim o seu par. O casamento começou em Buenos Aires e acabou em Mendoza, capital de uma região vinícola. Sendo o noivo um americano de ascendência argentina, a noiva uma franco-britânica, e vivendo ambos em Nova Iorque, muitas nacionalidades estavam representadas entre os convidados. Mario vinha de Puerto Rico, precedido pela sua fama. Tratava-se do "sweetest guy", um galerista de Williamsburg com um perfil feito pelo caderno Style do New York Times. Imaginei-o como uma espécie de brainy Ricky Martin e a perspectiva de o ter a dormir no quarto que eu partilhava com o padrinho, espaço com duas camas e um divã, foi crescendo, até que adormeci. Por volta das duas da manhã, sinto um peso sobre o corpo, como se alguém me estivesse a cobrir com uma pele de urso mas sem ter tirado o urso lá de dentro. Era Mario. Quem teve o ângulo privilegiado foi o padrinho. Recuemos uma hora. Mario entra no quarto e há indícios de que foi capaz de despir a camisa, mas não as calças. De cada vez que o tentou, caiu com estrondo no chão, acordando o padrinho, que contou pelo menos uns 3 tombos. Quando as calças finalmente venceram os calcanhares de Mario, não contente com o divã, ele resolveu experimentar a minha cama. Conta o padrinho que um Mario de cuecas se deitou sobre...  (Já acabo)

publicado por Vasco M. Barreto às 23:50
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Receber em casa

Receber é uma arte maior que nos define bem - como somos e como gostaríamos de ser. Há de tudo, como na farmácia- desde o anfitrião subitamente formal, que só nos começa a tratar por tu ao quarto prato, ao pramático e fonas que, com um sorriso, apela a todos os comensais para ingerirem directamente do chamado tupperware. Do confiante, mais apostado na converseta do que na comezaina, ao susceptível, capaz de ficar de trombas a partir do momento em que não elogiamos com as palavras certas o arroz à primeira garfada. Gente capaz de escolher a música adequada ao repasto a rapaziada mais arriscada, que durante a janta deixa a tocar um CD de um primo psicopata, com um alinhamento que pode ir de Miles Davis a trash metal lituano.

 

Como é que posso dizer isto? Não me considero anfitrião de rasgo mas tavez não seja o pior cá do bairro. Sou acima de tudo um adepto da causa. Era capaz de fundar o Partido dos Que Recebem em Casa, até porque sinto ser uma prática que vai escasseando cada vez mais "na minha geração" - que é a mesma do JP Simões. Estamos cada vez mais prontinhos para ir jantar à hamburgaria da moda e menos disponíveis para estar com os nossos em território privado. Cresci a jantar em casa dos amigos dos meus pais - e sei que as gargalhadas em casas dos amigos têm outro tom, duram mais tempo. Um dos sons que guardo para a vida é a gargalhada em uníssono dos amigos dos meus pais - aquela que chegava ao andar de cima onde a petizada dormia no chão, nessa altura em que as crianças ainda andavam de um lado para o outro, sem cuidados extremos e preocupações exageradas: "Ó, coitadinho do miúdo, está com tanto soninho".

 

Hoje ofereci em casa a dois amigos aquilo que se pode classificar como um dos piores almoços do universo - um bife duro e sensaborão, acompanhado de umas batatas fritas finlandesas, sobretudo na temperatura. Mas vivi um dos momentos que irei levar alegremente comigo para a tumba. Faço, sim, parte daquele grupelho de cidadãos que nunca se habituou ao costume lisboeta do "cafezinho".  Esta coisa do "temos de ir tomar café" sempre me pareceu uma desculpa para fugir a uma experiência cada vez mais bizarra e alternativa, possivelmente à venda no futuro num pacote da "Vida É Bela": a intimidade. Prefiro estar com um amigo na sua cozinha cheínha de pratos amontados no lava-louças do que na mais reluzente das Versailles. A propósito, sinusíticos amigos, quem é que agora se chega à frente, pá?

publicado por Nuno Costa Santos às 18:42
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Quinta-feira, 28 de Abril de 2011

Estou farto do Barça

da ponta das unhas dos dedos do pé até à raiz dos mais longos cabelos, farto da retórica à volta do Barça, farto da suposta superioridade romântica, estética e moral do Barça e farto da cegueira à volta do Barça.

Que são a única equipa que quer ganhar; que eles sim, sabem jogar e os outros são uns cepos que têm ideias estranhas como, sei lá, de vez em quando experimentar um contra-ataque ou um passe mais longo; que nunca fazem faltas, aliás jogadores como o Mascherano nem vieram de clubes faltosos e duros como o Liverpool; que tratam bem a redondinha; que têm uma filosofia de jogo. Essa é a que eu mais gosto: uma data de energúmenos que se tivessem que ler um texto filosófico eram bem capaz de sofrer uma apoplexia nervosa defendem uma "filosofia".

Porque o Barça, dizem, é diferente. Faz um futebol excitante. Nunca se sabe o que esperar. Por acaso eu sei sempre o que esperar: o primeiro passe sai para o Piqué, que ou faz um passe longo para a direita ou coloca no Busquets ou no Xavi. Se for no Busquets o Xavi abre a seu lado e ou o Messi ou o Iniesta vêm buscar enquanto os outros dois avançados rodam as posições. Depois é fazer circular até ao adversário a) aborrecer-se de morte (tal como eu) e adormecer (tal como eu) ou b) irritar-se (tal com eu ao vê-los) e ir à queima (eu preferia ir-lhes às pernas, ser irradiado e recebido em glória no meu bairro natal). 

O Barça, boa gente que não percebe nada disto, é tão excitante quanto um guião de filme pornográfico, tão entusiasmante quanto o relógio interno do cofre de um banco suíço. O que o Barça - o romântico, estético, moralmente superior Barça - faz é, curiosamente, levar ao extremo o que tanto critica aos outros: defender. O Barça defende-se guardando o mais que pode a bola, nunca arriscando um passe a mais de dois metros (excepto o Piqué, mas esse como não é anão consegue ver longe). Na realidade o romantismo do Barça é um pragmatismo feroz: trata-se de evitar o mais possível que o adversário tenha a bola e evitar o mais possível que o adversário esteja acordado.

Mas o Barça tem a vantagem de querer atacar e nunca fazer faltas. O que por acaso é mentira. Se o Barça perde a bola há logo três dos seus anões a chutar as canelas do adversário. Mas como são anões nunca ninguém se lembra de lhes marcar falta. Por contágio, assassinos como Busquets e o Mascherano, imbecis como o Piqué e trogloditas como o Puyol escapam a qualquer punição.

E se um jogador do Barça cai, o que é que acontece? Há onze anões a rodear o árbitro, a empurrá-lo, como se cada homem do apito fosse um Zé Pratas e cada um daqueles anões tivesse em si um Paulinho Santos. E isto sem que nunca nenhum deles veja um amarelo. Aliás, só há uma forma de um jogador do Barça ver um amarelo: declarar em notário que não se sente espanhol e que por si la roja ia para la madre que os los pario. De resto o Messi pode continuar a dar cotoveladas que nucna verá um amarelo.

Só que o Barça é diferente. Não tem patrocínio nas camisolas, por exemplo. O que por acaso acaba para o ano e logo com um patrocínio muito bonito, muito moral.

O Barça é diferente porque nunca largaria 100 milhões de euros pelo Ronaldo. Aliás, dizia o Xavi que o Ron não tinha lugar no Barça. O que é bonito. Excepto se nos lembrarmos que o Barça ofereceu 60 milhões pelo Ron, isto antes do Xavi fazer aquela declaração bonita, romântica e moral. Depois disso o Barça largou 50 milhões de euros mais o Eto'o num total de 70 pelo Ibrahimovic, após o que mandou este passear e largou 40 pelo Villa. O Barça da cantera não larga 100 milhões. Larga 110. 

A verdade é que o Barça é diferente. É um clube de desportistas. Que por acaso agridem adversários no túnel. E é liderado por um cavalheiro. Que sempre o foi, mesmo quando sob o efeito de nandrolona. Que é a substância que os cavalheiros - como ele - tomam - como ele tomava. 

Viva o romanismo estético dos exemplos da honestidade.

publicado por João Bonifácio às 17:01
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Segunda-feira, 25 de Abril de 2011

Moda

 

Fico sempre muito incomodado quando oiço que Milão, Nova York ou outra cidade que tal é a capital da moda.

Estas gentes não sabem do que falam. Em primeiro lugar, olham para a moda como se esse fenómeno se pudesse reduzir aos trapinhos que meia dúzia de tipos nos convencem a vestir ou àqueles desfiles de mocinhas alimentadas a folhas de alface com tofu e rapazes que deviam ter vergonha de andar naqueles preparos e que fazem as mulheres olharem para os seus maridos com um ar entre o enojado e o homicida. Depois, esquecem-se do mais importante, ninguém leva a moda tão a sério como os portugueses. Todas as modas. A moda em Portugal é como a crise: embrenhamo-nos de tal maneira na coisa que já não somos capazes de viver sem ela. E não é de agora.

 

Aqui há uns anos, na moda dos anoraks, vulgo Kispos, que deixavam um cidadão magrinho transformado num verdadeiro badocha, as ruas pareciam um anúncio permanente a uma famosa empresa de pneus. E quando estavam na moda as calças de ganga justas? A malta levava aquilo tão a sério que se aquela moda durasse mais tempo a raça lusa corria sérios riscos de extinção. Aliás, tenho para mim que a razão da rapaziada que anda agora pelos quarenta anos ter procriado tão pouco tem a ver com a temporada a que sujeitou determinadas partes do corpo a tão violento apertão.  

E nós não nos limitamos a vestir ou a calçar o que a moda dita. Somos mais sofisticados que isso. Um português sai de casa com o seu pullover vestido. O dia põe-se mais quente e tira-se o dito adereço têxtil: onde colocá-lo? Ah pois, esta importante questão não é assim deixada ao Deus dará. Quando eu era adolescente punha-se à cintura, quando ia ali pelos vinte passou-se a usar pendurado ao pescoço e agora é colocado por cima de um dos ombros num equilíbrio instável.

 

Mas, claro está, isto da roupa é coisa pouca para mostrar a nossa verdadeira paixão pela moda. E as minhocas? É que nós já tivemos a moda dum adubo milagroso à base de minhocas vitaminadas. Dum dia para o outro não havia lusitano com meia dúzia de cobres no banco que não estivesse disposto a investir neste negócio. E os Kiwis? Houve uma altura em que se arrancou tudo o que era árvore para fazer plantações dessa fruta que só de olhar para ela se fica com cólicas. E lojas dos trezentos? Havia rua que não tinha outra loja que não fosse uma dessas. E acções? Era ouvir os comentários dos taxistas sobre cash-flows descontados, retornos do investimento e afins. Férias? Mas, há português de classe média que não tenha estado no Nordeste brasileiro?

Esta febre da moda em Portugal é tão intensa que até o Estado sente obrigação de não desconsiderar o vulgar cidadão e segue-lhe os passos. Só isso pode explicar a febre de construir auto-estradas. Havia necessidade de fazer meia dúzia delas, mas o Estado tomou-lhe o gosto e quando se deu por ela não havia logradouro que não fosse servido por uma auto-pista de três faixas.

Agora que precisamos tanto de exportar, devíamos montar umas escolas para explicar a esses estrangeiros que têm a mania que percebem disto como é que se faz. Uns amadores esses tipos.

 

publicado por Pedro Marques Lopes às 23:17
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25/4

Um dia destes, vamos acordar e perceber que passaram tantos anos desde o 25 de Abril como de ditadura. Talvez então deixemos de falar da “longa noite fascista” e da nossa “jovem democracia”. E deixemos de desculpar com esses enganos todos os nossos fracassos.

Temos problemas com a verdade. Tratamos o Estado Novo como qualquer coisa que nos aconteceu. Um meteoro vindo do espaço. Uma catástrofe natural. Uma praga. Como se, um belo dia, tivéssemos todos ido passear e, ao voltar a casa, déssemos com um ditador que, subitamente, se tivesse aproveitado da nossa ausência para tomar conta de tudo.

Não foi assim. Estávamos cá. Muitos de nós pediram-lhe até que viesse, convidaram-no a entrar, deixaram-no instalar-se, colaboraram com ele. A maioria contribuiu mesmo com o seu silêncio e a sua apatia. Ano após ano. Década após década.

E agora recusamos olhar para trás. Negamo-nos a tentar perceber porque vigorou em Portugal a mais longa ditadura do século XX europeu; uma ditadura que, ainda por cima, foi das menos violentas dessa Europa para que, hoje, olhamos com inveja, como se tivesse nascido em melhores famílias do que a nossa.

Às vezes, pergunto-me que terá acontecido a toda essa gente que habitou o país de 1926 a 74 e não foi perseguida pela PIDE – ter-se-á desvanecido no ar aos primeiros acordes das senhas radiofónicas? Pergunto-me também por que não figuram nas fotos e imagens de arquivo todos os milhares que, volta e meia, se gabam de ter feito Abril – para usar os termos com que sói expressar-se nestas ocasiões. E pergunto-me ainda como chegámos a isto, a esta bizarra coexistência onde uns suspiram por Salazar, outros agem como estátuas andantes continuamente à espera de flores e aplausos por tudo quanto fizeram por nós, alguns digam que isto está pior que dantes, outros interrompam clamando que quem o diz não sabe do que fala, uns e outros façam terra queimada de tudo quanto se passou depois.

De vez em quando, parece que Portugal só viveu um dia: o 25 de Abril de 1974. Todos têm um álibi para onde estavam antes e depois. O que aconteceu até dia 24 e para lá de 26 não é para ser pensado. Se estamos melhor, a quem o devemos? Quem são os grandes responsáveis? Se estamos pior, quem devemos culpar? Quem podemos sentar no banco dos réus? Mudámos ou fomos, afinal, sempre os mesmos?

Ao que parece, alguém terá de escrever a nossa história por nós. 37 anos não chegaram para termos idade para encarar o que vemos ao espelho. Ficámos com os cravos e as canções. Que importa se a criança-símbolo da revolução cresceu e emigrou?

publicado por Alexandre Borges às 14:19
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Domingo, 24 de Abril de 2011

E porque o sol quando nasce é para todos, o primeiro texto previamente editado, que eu não estou cá.

Agnostalgia

Às vezes o mundo que existe nas palavras morre de excesso de vida. Gasta-se pelo uso e pelo tempo, como o ferro e o amor do sermão de António Vieira. Fica um esqueleto oco, apenas funcional; e nalguns casos – raros – um eco, que ao ressoar através dos dias nos devolve o muito que a palavra significou e nunca conseguiu dizer.

«Nostalgia» é uma dessas palavras que lentamente fomos esvaziando, numa agonia cada vez mais dolorosa e irreversível. De tão utilizada já de nada nos serve. A sua omnipresença é a sua certidão de óbito: vemo-la desperdiçada nas nossas vidas, distante do lugar etéreo que deveria ocupar. Não é como a saudade, com a qual muita gente tende a confundir. A nostalgia é um lugar idealizado, sem dor nem lados sombrios. É a Disneylândia da memória, onde todos queremos voltar. Ao contrário da saudade, que inapelavelmente traz com ela o mais o pesado dos fardos: o ser verdade.

Desconfio francamente de quem hoje se diz um nostálgico – e isto inclui-me, que por vezes não resisto a esse território do «era uma vez», a tentadora «land of lost content» de Housman onde, para nosso descanso e preguiça, nunca poderemos regressar. E é tão fácil: basta uma fotografia de um dia em que fomos felizes ou jovens ou ambos; uma canção que nos atira para um amor antigo, uma casa  bem conservada, uma paisagem que nos é familiar. E é inevitável, ao que parece: este nostálgico renitente que vos escreve vê-se de repente no meio de jantares de colegas da escola primária com outros nostálgicos ainda mais improváveis. Ementa obrigatória e sugerida pelos comensais: doces memórias, histórias de graças e alegrias, que deixam de fora as raivas, brigas e tristezas de ocasião essenciais para uma infância feliz.

O problema é que mesmo quem consiga evitar todas estas armadilhas naturais – e assim de repente não conheço nenhum individuo criado sob uma civilização ocidental que o consiga – ainda leva com outra terrível maquinação do nosso tempo – a nostalgia induzida e, por consequência, banalizada. Hoje mede-se por décadas: a «nostalgia dos anos 80», por exemplo, já fez que eu criasse anti-corpos contra a minha própria adolescência e juventude. São memórias impostas a quem tudo descobria nessa altura; com a diferença de que agora os «nostálgicos» são potenciais consumidores com um poder de compra mais ou menos confortável que lhes permite comprar recordações. E depois há os nostálgicos de um tempo que não viveram. A esses devemos, em regra, a modernidade.

O problema dos dias, dos meus dias, é este: não me importo de ter saudades mas Deus me livre da nostalgia. É urgente desaprendê-la para voltarmos a senti-la outra vez.

 

 

 

 

[publicado originalmente em nicotinemagazine.net]

publicado por Nuno Miguel Guedes às 12:32
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Sábado, 23 de Abril de 2011

A triagem do Martim Moniz

A história que se segue é um exercício em racismo social, por isso, se acreditam num mundo melhor, na tendência natural do ser humano para praticar o bem ou em outras bacoradas existenciais do género, escusam de ler. Adiante.

 

"But his soul was mad.  Being alone in the wilderness, it had looked within itself and, by heavens I tell you, it had gone mad."

Joseph Conrad, Heart of Darkness

 

Uma infecção no ouvido levou-me no outro dia ao coração das trevas (do atendimento ao público). Se Joseph Conrad algum dia tivesse dado por si nas urgências do S. José, acho que reescreveria o romance de uma ponta à outra. Não me obriguem agora a pensar muito, mas imaginem que o Kurtz dava entrada nas urgências com uma intoxicação alimentar e quando o Marlow lá chegava, isto depois de uma xaropada de páginas a descrever o estacionamento em segunda fila na Almirante Reis, os pretos do Intendente and whatnot, encontrava o Kurtz numa cama em pleno corredor, por via de paludismo contraído enquanto esperava por uma consulta. O resto inventam vocês, não me pagam para isto.

 

Para quem não sabe, o serviço de urgências do S. José é uma das mais conhecidas ETHR (Estação de Tratamento de Humanos Residuais) da cidade. Há outras na área metropolitana de Lisboa, e mais podia ser dito sobre o conceito, mas é como vos digo, o objectivo aqui é escrever textos não muito longos e fazê-lo de borla, por isso, se querem mais, façam de conta que isto é o New York Times e arrotem qualquer coisinha.

 

Para começar a experiência, fui atendido por um gajo sem farda, todo cheio de tiques urbanitas. Perdoem-me os leitores por eu não ser holandês ou o caralho, mas ser atendido na chegada a uma urgência por alguém que se vestiu como se estudasse design de moda no IADE não é uma merda que me caia bem. A pessoa que nos recebe no hospital, quando temos 38 de febre e uma otite, não devia ter um corte de cabelo no valor de 7 taxas moderadoras. Correu melhor do que esperava, na medida em que foi rápido, indolor e que, se Deus quiser, nunca mais o volto a ver.

 

Seguiu-se a triagem, “inspirada no modelo de Manchester”. Isto é uma daquelas alturas em que o meu cérebro pensa simplesmente “LOL!” (tenho 29 anos, nenhuma ambição de ser lido daqui a um século, e cresci a usar o mirc). A triagem de Manchester é uma invenção curiosa na medida em que parece ter sido descoberta em Portugal: lixa o esquema aos que são honestos e premeia os chicos-espertos. A coisa passa-se assim: se o paciente chegar lá e disser a verdade sem dramatizar, pior, se o fizer em português escorreito, estilo “sinto dores no ouvido e padeço de uma febre ligeira”, recebe uma pulseirinha verde, que é a melhor forma que a instituição de saúde tem de nos dizer “agora esperas aí sentadinho umas horas que é pra não seres flor de estufa”. Isto foi o que me aconteceu. Por outro lado, se um gajo chegar lá e disser que tem 39 graus de febre e não consegue encostar o queixo ao peito, epá, pára tudo, dêem uma pulseirinha laranja a este fulano que ele vai morrer! Esta é a forma que o hospital tem de dizer que o nosso caso é importante, o que não significa que sobrevivamos. Como isto não é um episódio de Grey’s Anatomy, vamos esperar umas horas na mesma (entretanto há mais 50 gajos com sintomas de meningite ou gripe A). Quando chegar a nossa vez, também não vamos ser atendidos por uma neurocirurgiã charmosa, nem mesmo por uma chinesa com sentido de humor, mas sim por um calhau qualquer, cujo ar empedernido deve ser atribuído à vida miserável que os salários no público e no privado lhe proporcionam. Portanto, foi este o doutor que me calhou em sorte. Nem a Grey, nem a chinesa: um calhau falante.

 

Mandou-me fazer análises ao sangue como quem faz um favor, e voltar para a sala de espera. Lá fui, todo eu pulseirinha verde de resignação. Ocupei um lugar na sala de espera, onde pelo menos 3 pessoas esperavam agora pela sua consulta deitadas, duas em cadeiras e uma no chão, mostrando de forma cabal a diferença entre estar doente e ser-se doente. Alguns minutos passam e a impaciência aumenta, mas eis que alguém do lado de lá parece pronto para chamar o próximo. Depois de alguns segundos de feedback em que não percebemos se as pessoas que usam microfones nos hospitais são extremamente tímidas ou apenas estúpidas, todos ouvimos o mesmo nome ser chamado: Coronel Urso. Eu gostava de ter uma graçola melhor para terminar a crónica, mas não tenho. O senhor Coronel Urso, que eu vira algumas horas antes rasgar 2 páginas de uma TV 7 Dias, levantou-se e lá foi. Fora atendido antes de mim e preparava-se agora para regressar à vida activa com uma receita de anfetaminas, imagino. A pulseirinha era laranja, claro. Mais uma história feliz na luta contra a meningite. Quanto a mim, passei as 2 horas seguintes à espera que um calhau me receitasse Clavamox. Obrigado, Manchester. A sério.

 

publicado por Vasco Mendonça às 18:41
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Sexta-feira, 22 de Abril de 2011

Chuva miudinha

 

Nesta manhã de sexta-feira santa, molhada por uma chuva pequenina, como aquela que muitas vez cai na minha terra, recordo-me da Páscoa nas Furnas, ilha de São Miguel, Açores. Íamos - os meus avós, eu e a minha irmã - para o Hotel Terra Nostra e aí ficávamos durante uns dias, a passear pelo parque e a conversar e a jogar damas com os rapazes e raparigas da nossa idade, alguns deles amigos que ficaram para a vida. Também havia vagas e desajeitadas partidas de ténis no campo junto ao Casino, muitas delas interrompidas pela meteorologia. E, naturalmente, almoços e jantares no restaurante do hotel - cada família na sua mesa, acenando e sorrindo quando chegava, despedindo-se quando regressava aos quartos. Tempo ordenado e familiar esse, como o vale das Furnas onde respirávamos.

 

Chove, chove uma chuva miudinha e açoriana em Lisboa, a convidar à memória. E eu lembro-me desses tempos, desses rostos, desses gestos. E escrevo sobre isso, possivemente para me abrigar da saudade. Hoje, se estivesse em São Miguel, se não estivesse em Lisboa, prestes a seguir para a Galiza, à procura das raízes do Fernando Assis Pacheco, iria, creio, às Furnas almoçar. Gostava que os meus filhos fossem. Para conhecerem esse ritual que ainda hoje existe, praticado pelas mesmas famílias, pelos mesmos acenos, mais velhos mas ainda persistentes como os bons rituais. Para, sobretudo, celebrarem os bisavós e eu lhes poder reproduzir algumas das histórias que, à mesa, o meu avô nos contava, repetidas vezes, da sua infância em Belém - mesmo que eles ainda não as percebam há-de ficar qualquer coisa.

 

Que Furnas haverá no futuro, quando eu for avô, se é que lá chegarei? Que lugares abrigados do ruído do mundo, ora com chuva miudinha ora atravessados por um sol franco e primaveril, existirão para se ser convenientemente avô e poder levar os netos nas férias da Páscoa? Territórios onde se suspendem afazeres e noticiários e se pode apenas estar com os nossos, como se não houvesse mais nada, mesmo mais nada, para além disso.

publicado por Nuno Costa Santos às 10:11
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Domingo de Páscoa com Tommaso Meo

Uma série sobre o programa animal: comer, não ser comido e dar a comer

 

Para eu ver o tampo da sua secretária, foi preciso que ele morresse. Só então retiraram as compactas resmas de artigos, alinhadas em altura e a fazer uma superfície de trabalho meio metro acima da original, onde ele apoiava os cotovelos e pousava a folha que rabiscava a lápis. Alguém devia ter guardado aquelas resmas sem desmanchar a ordem, pois documentavam o percurso intelectual de Tommaso Meo nos últimos anos, como os estratos geológicos contam a história de um lugar - na base estavam as leituras mais antigas, talvez ainda do tempo de Mitterrand, e no topo as mais recentes, governava Alain Juppé. Nunca mais voltei a ver tão impressionante sinal de curiosidade e desorganização. Tommy Meo tinha sempre pressa de chegar a algum lado e quando fui para Paris e comecei no seu laboratório ele estava mais vezes no futuro do que por lá, embora sempre o encontrássemos a rabiscar à secretária. 

 

Isto não é um elogio fúnebre. Seria mais fácil escrever sobre um morto querido, porque há nisso um elemento arrebatador e a empatia traz autoridade. Também não é um ajuste de contas que o lento passar do tempo fez urgente; apesar de o desaparecimento de Tommy ter sido uma surpresa  e de a conta corrente entre doutorando e orientador nunca estar no zero, o essencial não ficou por dizer. Creio que ainda penso na morte de Tommy por ter sido a primeira que senti já adulto e me ter faltado a naturalidade da criança que se põe a chorar com a morte dos avós e o desespero avassalador de quem perde um amigo. Terá sido a primeira sensação complexa perante a morte, mas que não chegou ao cocktail de contrários que por estiramento nos deixa relativamente quietos e extenuados, sendo antes a mistura de impulsos sem contrapeso que nos faz dar voltas aos quarteirões num estado de inquietação.  Quem vinha comigo perguntou: "como estás?" 

 

Estava triste, sobretudo quando depois parei durante uns segundos diante da cova com o caixão ainda por cobrir de terra, mas não tão triste como um dos seus amigos mais próximos. Pensei no mistério da sua morte e atribuí propriedades premonitórias à tabela de esperança média de vida de um tratado antigo que ele tinha exposta no seu gabinete. Não deixei de estar estupefacto, talvez até hoje, como se aquela semana em que não sabíamos dele tivesse incubado a possibilidade de uma tragédia que sobreviveu inclusive à confirmação da sua morte. Fiquei perturbado quando me surpreendi a pensar no desaparecimento dele como desculpa para o meu futuro falhanço académico. Senti-me mais próximo dos meus colegas, com a lúcida sensação de se tratar de uma intimidade de circunstância. Houve ainda direito à indignação do egoísta: "Tommy, porque me abandonaste?" 

 

Tommy ensinou-me a sangrar animais e o teste de Ouchterlony, uma técnica, à época já algo arcaica, que detecta interacções entre anticorpos e antigénios que se difundem num gel de agar. Ensinou-me também, ainda que involuntariamente, os perigos do enamoramento prolongado com as ideias, e passou-me para as mãos a primeira experiência bonita em que trabalhei. Foi um legado parco, mas antes dele nunca tinha trabalhado sobre uma ideia bonita e desde então, para o mal e para o bem, creio que a resposta a uma pergunta me interessa tanto como o modo de responder. 

 

Quando tento reconstruir aqueles últimos dias, lembro-me sempre do almoço de Domingo de Páscoa de 1997. O anfitrião e o seu filho receberam o seu amigo Tommy e eu apareci também, ao abrigo da solidariedade entre os expatriados. Foi a única vez que estive com ele fora do instituto onde trabalhávamos. Ainda recordo pormenores da casa, mas já não sei o que comemos e qual o tema das conversas. Duvido que Tommy me tivesse posto à prova como no nosso primeiro almoço e encontro, em que me testou a esperteza com tricky questions, pois trabalhávamos juntos há mais de um ano e, fosse qual fosse a sua ideia a meu respeito, não devia ter grande vontade de reavaliar as suas convicções. Talvez tenhamos arrumado a questão de Deus com aquele tratamento sumário dos ateus, embora a competência de Tommy para a bioquímica e a estatística não o fizesse necessariamente descrente. Não sei se o voltei a ver depois daquele almoço; há uma série de imagens, sons e até cheiros (a água de colónia) a que falta uma data precisa: Tommy falando com o cambodjano Thong na sala dos computadores; Tommy irritado ao telefone, quando lhe digo que a experiência estava feita e não tínhamos destruído o dogma; Tommy comendo pistácios compulsivamente; Tommy especulando com agilidade durante as reuniões de laboratório.  

 

Morreu poucos dias depois daquele almoço e foi enterrado no cemitério de Montparnasse. Num sonho acordado recorrente, viajo até Paris e vou ao cemitério com a intenção de deixar umas flores na sua campa, mas não a consigo descobrir. 

publicado por Vasco M. Barreto às 04:00
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Quinta-feira, 21 de Abril de 2011

Este moço atira-se ao olho

Dizem que a brasileira é que é boa, a espanhola idem, melhor só a americana que está em todo o lado. Que a nossa é perra e parca em prazeres, que não se arredonda nem dança com a mesma gula. Não creio. Temos com a nossa língua a mesma relação que com o nosso bairro: de tanto o percorrermos parece-nos banal. Anda a faltar-nos um pouco de turismo da língua: olharmos de novo os azulejos de um vocábulo, o reboco de um adjectivo, as longas avenidas dos advérbios de modo.

Houvesse clube dos turistas da língua, com quotas e bandeirinhas e eu estava lá. Não sou um turista sério, não uso guias, não sei nada da cultura local – apenas se me acontece dar de caras com uma expressão e ficar estacado a pensar “Como raio nunca reparei no profundo génio que emana desta expressão?”.

Por exemplo, a expressão “Dar nas vistas”. Parece a frase mais simples do mundo, gasta, velha, prostituída nas bocas de toda a gente. Mas é mirá-la de perto e acabamos a admirá-la. Deixem-me explicar.

O génio começa no uso de “vistas”. Imaginem que o autor da expressão tinha, no momento da criação, optado por dizer “Dar no olho”. Por exemplo: “Este tipo dá muito no olho”. Não era a mesma coisa, certo? “Vistas” tem a exacta dimensão popular que a expressão precisa: atribui-lhe uma certa rudeza, mas ao mesmo tempo uma certa bonomia rústica.

O talento do criador adensa-se no uso do verbo “Dar”. O criador podia ter escolhido “Atirar-se às vistas”: “Este moço atira-se às vistas”. Ou, num momento de confusão, “Este moço atira-se ao olho”. Ou ainda, no momento em que os cogumelos começassem a fazer cócegas nas traseiras do cérebro, “Este moço dá-se ao olho”.

Subtil, o criador recusa verbos como “bater” (“Este moço bate nas vistas”). Opta por um verbo despojado, o verbo “dar”. E depois inverte-lhe a polaridade, tornando a doação um acto não de generosidade mas de uma indesejada generosidade, esmola de que se desconfia num país pobre. O moço “dá nas vistas”, acerta-lhes, mas sem sem atirar contra elas: é como se o desastre entre o moço – que o criador da expressão se abstém de qualificar – e as vistas – puras, puras, puras – fosse inevitável, uma tragédia que o país esperava há muito.

Por vezes passo, digamos, minutos inteiros a tentar imaginar como é que estas expressões surgiram, no apuro do seu tempero.

Terá o criador tentado a expressão com diferentes amigos, como um comediante a experimentar uma piada? Terá a expressão sido recebida vezes sem conta com um silêncio incómodo até que um dia, sem que se notasse, reinava sem par no império infeccioso da língua, enquanto o seu autor se recolhia para sempre na sua cave, humilhado pelos silêncios com que as suas expressões eram recebidas? Ou será que algum esperto ouviu uma forma inicial da expressão e depois a aprimorou?

Nunca vamos saber. Nem com certeza nem sem ela. Porque ao contrário das outras a nossa língua não dá - errr - nas vistas.  

publicado por João Bonifácio às 18:50
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