O retentivo anal retira pouco conforto das noções de física. A ideia de demolhar o bacalhau dentro do autoclismo puxa-lhe o vómito e de pouco adianta lembrar-se que as fezes não nadam contra a corrente. Naquele coliseu de loiça, ele vê as fezes como salmões aos pinotes contra a turbulência, subindo a custo enquanto o autoclismo se esvazia, a tempo de o penetrar pelo rebordo da sanita antes de se interromper o caudal de água. Ele imagina depois o bacalhau em coabitação com um cagalhoto que se adelgaçou pelo esforço e só então põe a física ao serviço da sua condição: o adelgaçamento aumentou o rácio superfície-volume e facilitará a contaminação da água. O bacalhau, que tanto demora a deixar de estar salgado, num instante fica insalubre.
Em rigor, não é possível conceber melhor aparelho de demolha, na rentabilização da água e no improviso com que se chega ao automatismo. Mas o Homem do Pullover amarelo (HpA), que não sofre de retenção anal, pensa que esta ideia, mais do que pícara, é ofensiva. Para os convivas e, sobretudo, para o peixe. Não se pode ligar as mudas de água aos alívios intestinais de toda uma família, associar a preparação de um repasto ao desperdício do repasto anterior. A decisão exclusivamente pragmática, pela exposição nua de um raciocínio, sem um capricho ou uma cedência ao estilo que a embeleze, só transmite frieza. Ora, como tantos outros, também ele durante anos pensou que o bacalhau era tal como surgia nos mercados; ele julgava que aquele triângulo sem olhos nadava no mar, aí menos salgado do que nas bancas, é certo, mas no essencial como um peixe pleuronecto invisual. Ao perceber que, afinal, a morte do bacalhau inicia uma radical metamorfose (ver imagem), o HpA sente que tem uma dívida de respeito. Esforça-se por consumi-lo em ocasiões especiais e espera que o demolhem com o respeito que todos os cadáveres merecem.
Hoje de manhã, na Loja do Cidadão, fui visitado por um entusiasmo eufórico-juvenil enquanto tratava da renovação do BI. Senti-me tão estranhamente bem ali que tive vontade de experimentar os serviços todos. Como uma criança na Feira Popular que, numa tarde, quer experimentar tudo o que há para experimentar - do comboio fantasma à montanha russa. Fui lá para tratar do BI mas, a certa altura, só me apetecia tirar senhas dos Correios, da Direcção Geral dos Impostos, da Electricidade de Portugal, da Lisboagás, da Via Verde, do Instituto de Emprego e Formação Profissional, da ADSE, da EPAL, do Registo Automóvel, da Caixa Geral de Aposentações, da Direcção dos Serviços de Identificação Criminal e esperar, com o sorriso dos cidadãos apaziguados com o destino, pela minha vez de ser atendido. Isso: queria tentar resolver problemas que não tenho só pelo gozo de visitar balcões e dar dois dedos de conversa com os funcionários de serviço. Queria jogar à Loja do Cidadão. Estar ali como quem vai ao Casino Lisboa. Umas vezes participante da jogatana, outras observador do fenómeno e das personagens. Sentado numa cadeira, entre a "Economist" e o "24 Horas", a olhar as coreografias várias de uma gente que trata dos assuntos da vidinha com a leveza de um musical inspirado e feliz.
confesso. sou capaz de gostar de grandes malhas sem ligar patavina às letras, aos poemas, aos "lyrics", como queiram chamar-lhes, alimento-me pouco de cantautores e mais de sovas na tarola e unhas na guitarra, vou no trautear e no balanço e daí ter grande facilidade em gostar de espectáculos como o do último sábado no museu do oriente, musicians of the nile de seu nome, em que aturei um chorrilho de gorgolejos com carinho e gozo, independentemente do fulano dos dentes de ouro estar a acusar a minha mãe de ser uma ímpia devoradora de chispalhada. mas o som, meus amigos, o som perdoa tudo. e embala.
rewind
tinha 16 anos quando saiu o nervermind dos nirvana e o estertor na espinha foi absoluto, nunca compreendi ou sequer destrincei o que raio o homem gritava em smells like teen spirit, o que contava era a santíssima trindade baixo-bateria-guitarra especialmente musculados e cortados à medida de uma juventude revoltada com injustiças como a vitória da alemanha sobre a argentina com um penálti inexistente no mundial de 90. mas de bola, de chicha de cautchú, falarei detalhadamente num próximo post. dizia eu que a malta queria expelir o angst e teve a oportunidade de fazê-lo na pista da discoteca. o próprio cobain cantarolava um par de anos mais tarde teenage angst has paid of well, manifestando uns grãozinhos de cinismo para com a cascata de dólares que lhe caiu no colo. deu-lhe para investir em droga e armas de fogo sem entender que estas últimas devem servir para proteger a primeira, como qualquer colombiano médio sabe e pratica. acabou feito em frangalhos, dando origem a inúmeras depressões juvenis e a algo muito pior - os foo fighters. resumindo e baralhando. as letras têm para mim importância relativa, excepto quando ouço indivíduos como os eels, indie rock de pouca parra e muita uva, credibilidade e autenticidade, carinho da imprensa, versos de chorar por mais, e são esses que aqui me trazem, nomeadamente
Life is good and I feel great
cause mother says I was
A great mistake
um mimo de doçura, uma atoarda que relativiza todo o estado de alma mais rasteiro que ameace uma ou outra alma mais fragilizada. vai daí,
jovem,
não te rales se a tua garina não respondeu ao teu kolmi. ou se a tua felicidade parece mais distante do que as boas notas a matemática. trata de ouvir os eels e se a tua mãe nunca se saiu com uma destas frases que cortam cerce, relacionando-te directamente com um acidente de percurso, agradece aos céus e confia que as coisas só podem melhorar. o próprio Mr. E, que espreme na autobiografia o sumo das suas letras, tem conseguido safar-se melhor com o passar dos anos. até o wim wenders já o pôs a contracenar num videoclip com para cima de 50 gajas boas. é esperares pela tua vez e ires pondo desodorizante.
Na sequência de um desentendimento com o professor de guitarra sobre o número de horas necessárias a uma boa aprendizagem, o meu filho Sebastião quer desistir das aulas de guitarra.
Como pai moderno tento dialogar: “E porque é importante para a tua educação”, “E, mais tarde, vais-me agradecer”. O rapaz olha para mim com cara de enfado, encolhe os ombros e diz-me: “pronto, lá vens tu com as falinhas mansas do costume”.
Nesta altura hesito entre um carolo e uma bofetada, mas como pai liberal conto até dez, suspiro e volto à carga: “meu querido filho, o teu pai adorava ter estudado música e não teve oportunidade e, com sacrifício (é mentira, mas fica bem), quer-te dar essa dádiva única (mordo o lábio esperando que ele não se ria) e, além do mais, isto é importante para o teu futuro.
O sacaninha riu mesmo e desfiou-me o rol de queixas e verdades absolutas: que o Bill Gates nem campainhas sabia tocar, que a música era suposto ser divertida e que ler risquinhos e bolinhas num papel é uma maçada, e que assim não tem tempo para jogar PS2 e mais um rol de quinhentas mil coisas que já não ouvi porque nessa altura a minha mão esquerda ganhou vida própria e tentou agarrar um pau de marmeleiro (madeira levezinha...). Felizmente a minha mão com mais juízo, a direita, agarra na outra e a situação compõe-se.
Ponho o meu ar mais sério e preparo-me para o que pensava ser o argumento definitivo, o clássico, “meu filho, tens 11 anos e eu é que sei o que é melhor para ti”, quando Nossa Senhora de Fátima me iluminou e ouvi desta boca que a Terra há-de comer: “Ó pá, és mesmo otário. Os gajos que tocam guitarra têm sempre montes de raparigas atrás deles”.
O Sebastião teve 20 valores no exame de guitarra.
Oscar Wilde, o elitista, fez máximas difíceis de parafrasear . "I can resist everyting but temptation" tem um apuramento formal e um depuramento lógico que inibe qualquer tentativa de reciclagem. Já George Orwell, o democrata socialista, tem expressões que toda a gente reusa, como "All animals are equal but some animals are more equal than others" e "Big Brother is watching you". Paradoxalmente, é Wilde quem melhor serve o leitor, poupando-o do embaraço. Porque o maior inimigo da máxima é a paráfrase. Se do "power tends to corrupt; abolute power corrupts absolutely" (Lord Acton) alguém extrai um "a beleza atrai; a beleza absoluta atrai absolutamente", essa pessoa precisa de ajuda.
Os cozinhados da avó Maria eram imperfeitos. Didacticamente imperfeitos. Do excesso de temperos aos excessos de comida, tudo neles era excessivo. A primeira crítica gastronómica do Homem do pullover amarelo foi mesmo feita mentalmente - ainda era analfabeto - na freguesia da Ponta de Sol, ilha da Madeira. Relembre-se que a insularidade não garante e excelência culinária, mesmo sendo irrefutável que uma ilha é uma porção de terra rodeada de peixes por todos os lados. A pior cozinha do mundo é a caribenha e se o balsero cubano foge por não ter o que comer, os que lá ficam não é seguramente por causa da comida que lhes dão. Mas na Madeira come-se bem. Diz-se que a carne é mais tenra por causa do sedentarismo da vaca, que passa a vida num palheiro. Que é mais saborosa por causa do pau de loureiro que a trespassa. Que o isolamento geográfico fixou acidentes felizes, como o hábito do milho frito - e não há maturidade gastronómica sem um veículo idiossincrático para os hidratos de carbono. Que o clima quase tropical lhe deu um fruto inferior apenas à romã, a anona. Que a cultura da Madeira ludibriou o turista com o bolo homónimo e guardou para os nativos o bolo do caco, sublime por ser pão. Que o bodião, Sparisoma cretense, faz a melhor das caldeiradas. Que as castanhetas fritas ganham aos jaquinzinhos, apesar de os vivos violeta do peixe não chegarem ao prato. Que a lapa grelhada sabe melhor quando somos nós a ir buscá-la de mergulho em apneia. Que a lagosta local, o cavaco, deu inúmeras piadas, anos antes de no continente se brincar com o absurdo que era seguir um cherne com cara de boga.
O charme das coisas imperfeitas faz a tripla. Se diante da perfeição perdemos o ponto de referência, a imperfeição tem sempre a amarra que é a diferença para o que imaginamos perfeito. Fomos feitos mais para reagir a diferenças do que a sobreposições exactas. Uma leoa que persiga um antílope está a cumprir a sua condição felídea, viu a imagem da presa perfeita e pôs em marcha o seu programa animal, mas se a leoa resolve perseguir o David Attenborough na savana, de algum modo se humanizou. Com o homem sucede o mesmo e até um pouco mais, porque saturado de humanidade, ao contemplar a imperfeição ascende à transcendência. Há, depois, a sensação de magnanimidade, como aqui. Se perante a perfeição só se pode prestar vassalagem, ganhamos nobreza no elogio das coisas imperfeitas. E há, por fim, a ilusão de que experimentamos algo único. “Beauty is in the eye of the beholder”, assim mesmo, sem paráfrase. Ninguém pode fazer da perfeição alheia uma construção sua. 1984 não nos deu o Grande Irmão de Orwell que todos observa, mas sim a Jennifer Connelly, que todos passaram a observar. Desde então carregamos o fardo da sua perfeição e só a velhice dela nos poderá salvar. Ora, os cozinhados da avó Maria, no excesso de louro e especiarias, na doçaria rudimentar, no abuso da semilha, enfim, no estilo kitsch rústico, deixaram o Homem do pullover amarelo predisposto para o elogio e salvaram-no de uma errância pesarosa. Porque é sempre mais fácil perseguir a perfeição do que deixá-la para trás.
APDCM
A mudança de sexo chegou às letras
Ideia para um sketch
Manchete do “Povo Livre”
A música preferida de Fritzl
Ideia para um cartoon
A Bíblia Antitabagista
Judas denuncia Cristo pedindo-lhe lume.
Remontagem antitabagista
Nova advertência para os cigarros
(com um obrigado ao Jonas pela fotomontagem)
Foi ao Blockbuster com a ideia de trazer o "Nove Semanas e Meia" e acabou a alugar o "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias".
Versão portuguesa de uma conhecida série americana
Fornication de Algodres.
Fora de prazo
Sete Palminhos de Cara
Ideia para um sketch
Minuto Negro
Sinopse para uma série
Marques Mendes e Ticha Penicheiro são contra
Rui Veloso à porta do Estádio da Luz
Morres tu primeiro ou morro eu?
Flopspot.com
Piropos para cotas que passam na rua
Alunos de Apolo modernizado
Início de conversa
Museu de Arte Extremamente Jovem
Eu estou algures aqui
A frase do momento
Sinopse para uma série
Notícia de última hora
Em Setúbal o Paintball joga-se com chocos.
Márcio revela os seus sentimentos numa pergunta
Márcio quer vender uma ideia
Márcio quer vender uma segunda ideia
E no Google Earth dá para ver as mamas das gajas?
Deus, se quisesse, vinha cá abaixo fazer o papel do chato
Das vocações literárias
Da densidade dos dias
Márcio quer saber do que é que falaram nos bastidores (ou quem é que se assustou com quem)
Cobrador do Moleskine
Dos institutos de ciência onde tem trabalhado, o Homem do Pullover amarelo guarda invariavelmente duas impressões fortes: as histórias de suicídio e as boas cantinas. À primeira vista, estas impressões não estão relacionadas.
Um cientista chega à cantina do instituto como o pequeno Marco à morada de sua mãe. Fora da cantina, nos corredores, nos laboratórios, há um excesso de excentricidade e de tensão. Repare-se: não se fala de cozinheiras de cantina suicidas como se fala de cientistas suicidas. Um cozinheiro só se mata se perde uma estrelinha Michelin. Pelo contrário, entre os cientistas não é preciso chegar ao Nobel para se tentar o suicídio, é inegável que o gesto se democratizou, embora haja dúvidas se isso se tratou de uma conquista social. Segunda diferença: nos raros casos em que o cozinheiro de cantina se suicida, não o faz entre as panelas, escolhe um penhasco. Pelo contrário, o cientista tem o péssimo hábito de acabar com a vida no laboratório, insiste em querer passar o suicídio por acidente de trabalho. O seu e, sobretudo, o dos seus colegas. O caso Pillemer é esclarecedor.
Pillemer foi um cientista de alguma notoriedade para quem em meados do século passado trabalhava na via do complemento - uma cascata de reacções moleculares de defesa do nosso organismo contra microrganismos. Em 1957, numa altura em que uma teoria sua era posta em causa, encontraram-no morto no seu laboratório. Tinha ingerido barbiturato. Veio a saber-se a posteriori que as ideias de Pillemer estavam correctas, o que faria dele um Romeu sem Julieta à altura - as teorias não se suicidam, alguém sempre as mata. Mas sobra um pequeno problema. Quem o conheceu defende que o seu suicídio se deveu a motivos pessoais e não à ciência. Então por que motivo Pillemer se matou no laboratório? Talvez por ser ali que podia obter barbiturato de borla. Eis como se despromove um mártir a sovina.
Há outros exemplos. O cianeto de potássio, a escolha dos mais tradicionalistas, também se arranja com relativa facilidade num laboratório. A tese utilitarista do suicídio no laboratório começa, assim, a fazer sombra à tese mais convencional: a de que o cientista se suicida por ser uma alma (leia-se, “um ego”) sensível e ter uma relação intensa com o trabalho. Esta tese admite uma variação cínica, o suicídio copycat: o cientista não quer ser admirado apenas pela inteligência, quer que lhe louvem a imaginação, mas como, pela complexidade, a sua criação sai encriptada para o cidadão comum, ele tenta a associação ao artista mais eficaz, isto é, por simples mimetismo torna-se excêntrico como as pintoras e suicida-se como os poetas. Que tese vingará? Estamos numa área de difícil experimentação, não se atrai aqui cobaias com biscoitos. Aceite-se a incerteza.
Num instituto em Paris, em tempos trabalhou o homem mais feliz do mundo, a rapariga mais infeliz e o Homem do Pullover Amarelo. Ela era cientista, ele ainda deve ser cozinheiro. Chama-se Gabriel, à época tratava das pizzas na cantina, um local que pela extravagância gastronómica e conforto das cadeiras fez tanto para perpetuar os mitos sobre a cultura francesa como os incisivos pornográficos de Vanessa Paradis. Em cinco anos, Gabriel só teve um dia útil de tristeza e a rapariga nunca sorriu. Era angustiante partilhar aquele elevador. Ela devia pensar o mesmo e fez uma derradeira ascensão para se lançar do terraço do edifício onde trabalhava, um sexto andar. Nessa manhã, o homem do Pullover estava a trabalhar (quinto andar) e viu um vulto em aceleração a passar diante da janela. Ele terá talvez sido a última pessoa a ver a rapariga mais triste do mundo ainda com vida, embora a décimas de segundo de um embate letal no chão inevitável talvez seja mais rigoroso falar-se não de um vivo mas de um cadáver consciente. Era mesmo muito cedo, as manhãs podem ser terríveis. Se a rapariga tivesse aguentado até à hora do almoço, passado pelo Gabriel das pizzas, enfim... O Gabriel é judeu, talvez se sinta livre de tragédias pessoais por carregar a tragédia colectiva, blá blá... Ou então aquele desconcertante bom humor dele é apenas reflexo de uma ciclotimia afinada que o fazia feliz ao dias úteis e deprimido ao fim-de-semana. Mas o Homem do pullover amarelo nunca viu o Gabriel de kipah nem de cachecol do Paris Saint-Germain, o que pode saber ele? Nem sequer se a rapariga mais triste do mundo despiu a bata antes. Ele espreitou pela janela, logo depois do som abafado – que barulho é aquele? Pulmões a fazer de caixa de ressonância? Carne que abafa a marimba de ossos? - , mas não consegue hoje recordar-se da roupa dela, nem pode excluir que o branco naquela imagem de uma figura em posição fetal relaxada não seja coisa plantada, a silhueta desenhada a giz no asfalto antes de um genérico final de Hill Street Blues, aquela balada já a soar, anunciando o fim de um raro episódio que daquela vez não acabou ao cair da noite. Ainda bem que ninguém se lançou do edifício onde trabalhou em Nova Iorque, são 20 andares, uma carnificina à chegada.
Na passagem pela América não houve suicídios, certo, mas corria pela universidade uma história macabra de uma tentativa de envenenamento com flúor (tóxico quando em doses elevadas). Envenenar a comida, haverá coisa mais aviltante? E um cientista a envenenar outro? Já não há corporativismo. É também por isto que Homem do pullover amarelo nunca deixa comida nos frigoríficos comunitários. E gosta de passar ao largo da cantina por volta das 3 da tarde, já almoçado, para espreitar as empregadas. São um misto de operária com camponesa, inspiram uma confiança absoluta. Vêm fumar depois do seu almoço, sentam-se na escadaria ao ar livre e apetece logo ressuscitar Álvaro Cunhal ou outro que as desenhe. Não há aqui paternalismo, nem ilusões. Às 7 da tarde, quando por vezes se cruza com elas à saída, vendo-as já sem a farda, de casaquinho de cabedal e cigarro banal, ele percebe que seriam capazes de envenenar o marido e não lhes nega faculdade do suicídio. Só não lhe parece que o venham a fazer no local de trabalho, nem que Gabriel um dia use o forno de pizzas da cantina para tal fim. Eles guardam a decência própria que o cientista perdeu para a sua própria profissão.
"Estava numa lavandaria de Iowa City, a ler um conto de Chekov enquanto a roupa dos seus filhos dava voltas em quatro máquinas de lavar.
(...)
De quando em quando, pegava no lápis que mantinha sobre a orelha e escrevia algumas palavras na primeira página em branco do livro: pensamentos soltos, frases, cenas, ideias para desenvolver mais tarde. Não se lembrava de quando decidira tornar-se escritor. Nem porquê. Porém, sem que disso se apercebesse, tinha afastado a possibilidade de escrever um romance. Para além de não conseguir concentrar-se durante períodos muito longos, achava que os romancistas viviam num mundo que, para eles, tinha sentido. O seu mundo, em contrapartida, era insensato. Passava o mês inteiro a preocupar-se com o pagamento da renda e a manutenção dos filhos. Não havia tempo para grandes narrativas. Só escrevia textos de uma assentada. Poemas. Contos. Depois, durante semanas, reescrevia-os com prazer, dez, quinze, vinte vezes."
Eduardo Halfon sobre Raymond Carver, em "O Anjo Literário", Cavalo de Ferro, 2008
Perguntam-me se acredito em Deus e eu respondo: "Não tenho pensado muito nisso". Parece resposta engraçadinha mas não é – é mesmo verdade. Mesmo a transcendência pode ser expulsa do espírito se temos "muita coisa na cabeça". Não tenho pensado em Deus, é verdade. E não tenho pensado muito nisso de saber se acredito em Deus. Tenho os meus intervalos transcendentes - certamente filhos do fundo religioso mais ou menos difuso que foi tomando corpo entre as inquietações da infância. Atribuo sentidos metafísicos a certos encontros e acontecimentos na minha existência mas depois, durante largos períodos, esqueço Deus com a mesma atitude negligente com que deixo de telefonar a alguém. Não me orgulho disso, claro. Deixo simplesmente de lhe ligar, de lhe fazer confissões e (ah, a ancestral interesseirice dos crentes) pedidos. Podemos voltar a ver-nos - e o encontro funcionar como as festivas e fraternas reuniões de antigos combatentes de guerra. Mas também podemos não nos cruzar mais. E Deus desaparecer lentamente da consciência e da memória. Como aquelas pessoas que por vários motivos, uns mais misteriosos, outros mais prosaicos, foram deixando de fazer parte das nossas vidas.
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