Tenho paixão por palavras, dos bonequinhos que as linhas constroem, dos triliões de sons que elas produzem, das emoções que provocam. Encanta-me o poder delas, a capacidade que têm para tudo explicar, o ódio ou o amor que provocam, o entusiasmo ou a melancolia. Não há nada que elas não possam fazer.
A história de que uma imagem vale mil palavras até pode ser verdade. Mas podemos desfazê-la com 1001 ou até menos, muitas menos.
Infelizmente - como todas, aliás - essa paixão tolda-me o espírito. Olho para elas como um fim em si próprio, como se o que elas geram ou possam gerar fosse algo de secundário ou até de indiferente. Basta-me a carícia do som de um “meu amor”, do arranhar de um “odeio-te”, da dureza de um “não”, da ternura dum “minha menina”, dum ronronar de um “linda” ou da dança de um “oftalmologista” ou de um “rocambolesco”. Há dias em que passo o dia a dizer portanto só pelo prazer de sentir o duplo bater da língua atrás dos dentes.
Bem sei que as palavras são importantes, que não se deve brincar com elas, que podem ferir ou curar, que elas fazem parte de um código maior que nós, que se as libertarmos dos seus significados vão pairar no limbo como almas penadas, mas quem é que as mandou ser tão bonitas.
É por estas e outras que não se deve levar muito a sério os que escrevem, nunca saberemos se eles estão ou não enfeitiçados pelas palavras.
A primeira canção que ele aprendeu foi premonitória da desgraça que viveu.
Já a primeira que escreveu dizia assim (e conheço poucas palavras tão aguçadas para certos homens):
I got me a friend at last
He dont drink or steal or cheat or lie
His name is codeine
He's the nicest thing I've seen
Together were gonna wait around and die
Está aqui:
"Não serás como a palha que o vento leva", dizia o Salmo. E Cale cantava: "If I wasn't such a coward, I would run". Townes nunca foi um cobarde. E é preciso coragem para ser essa palha e ir onde tem de se ir. Mais ainda para saber cantá-lo.
Isto para dizer que faz agora 40 anos que saiu o primeiro disco, "For The Sake of The Song". Parece-me que a data não será celebrada com grandes encómios.
Primeiro foi o Adriano a chamar-me a atenção. Depois foi o Alexandre. Os dois estavam a receber SMS's e MM's meus que eram dirigidos a outras pessoas. Palavras tão profundas como "estou quase a chegar. Um beijinho", imagens de inscrições nas paredes da cidade, provocações ternurentas do género "ou atendes o telefone ou rebento-te a boquinha toda". Depois percebi o motivo da ocorrência: enquanto o telemóvel não se auto-bloqueava, tratava de, entalado entre os movimentos do meu bolso direito, enviar correspondência para os a's da minha lista. Calculo que não seja caso único - o meu telemóvel não é assim tão diferente do dos outros, há por aí muito boa gente com bolsos. Sim, os primeiros nomes da minha lista telefónica são os que mais sabem da minha vida pessoal. Eles que nada fizeram de mal para merecer isso.
Uma vez, quis apagá-lo mas um amigo disse-me que era melhor mantê-lo - como homenagem, como memória. Ainda há pouco, ao listar os meus números de telemóvel, vi-o e lembrei-me da pessoa, da falta que faz, da vontade de conversar com ela, de ouvir os seus conselhos e histórias. Voltei a pensar se faz sentido mantê-lo. Por enquanto, está ali, intacto e resistente, como um amigo que não se quer expulsar de casa, por mais que a sua presença tenha deixado de fazer sentido. Um dia, sei disso, terá de se ir embora. Não sei quando, não sei em que circunstância e que sentimento acompanhará o momento. Até porque a pergunta continua a latejar, consciente do seu absurdo e da sua inutilidade: qual é a altura certa para apagar o número de telemóvel de alguém que já morreu?
Todos temos um amigo. Um está no desemprego e a namorada abandonou-o. Outro é hiper-activo e nos restaurantes derruba o copo em cima da amante do terceiro amigo, um quarto fala quando não deve, há mais um que nos pede dinheiro emprestado dia sim dia não - e ainda há aqueles nos telefonam sempre mesmo que nunca lhes telefonemos de volta.
Um amigo, pelo menos, toda a gente tem.
Mas há um amigo que é especial. É o "Eu tenho um amigo". O "Eu tenho um amigo" de quem dizemos - a outro amigo - "Eu tenho um amigo que não resiste a roubar os trocos das máquina do tabaco". Ou "Eu tenho um amigo que se sente atraído pela cinquentona que por acaso é sogra dele". Ou "Eu tenho um amigo que sofre de ejaculação precoce".
Todos temos um amigo.
Este amigo é-nos muito querido. Antecipou-se aos nossos possíveis problemas, sofreu-os por nós - o que além de uma tremenda demonstração de humanidade, nos incumbe de uma responsabilidade que nos torna melhores, mais humanos.
Temos de sossegar esse amigo, porque o mundo compreende-o. Nós não (por vezes até o detestamos e aos seus problemas), mas o mundo sim. Nunca ninguém, ao interceder a favor do seu amigo dizendo "Eu tenho um amigo que", ouviu um "Que imbecil, esse teu amigo". As pessoas condoem-se, em particular porque também têm amigos assim:
"Queria falar-te de uma coisa. Eu tenho um amigo que sofre de ejaculação precoce".
"Epá, errr, eu, hmmm, também tive um amigo assim. Mas aquilo passou com o tempo".
(Hão-de notar que as pessas que ouvem um amigo dizer "Eu tenho um amigo que" não têm um amigo na mesma condição - tiveram.)
Todos temos um "Eu tenho um amigo". Vamos construindo com ele uma longa e terna dependência. E um dia, quando esse amigo morrer, nós ficaremos tão tristes que morreremos com ele.
E haverá alguém, num restaurante qualquer, a dizer:
"Eu conhecia um tipo que fumava como um cavalo e sofria de ejaculação precoce e morreu de velho. Bom tipo", dirá esse alguém, enquanto acende mais um cigarro, pensando no medo da morte que o seu "Eu tenho um amigo" sofre por ele todos os dias.
É esse "Eu tenho um amigo" que carrega a vida inteira as vergonhas, a culpa e os maiores terrores de todos. E a ele é raro darem-lhe um abraço ou cantarem-lhe os parabéns.
Ela disse, insistiu durante toda a noite: « Eu acredito nas relações. Acredito mesmo que devam durar , que existam, que façam bem». Mas só mais tarde disse que nunca teve o numero de telemóvel de um namorado em teclas de marcação rápida.
Os hotéis são locais perfeitos quando não se tem de lá dormir.
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