É bastante provável que neste preciso momento seja o último dos cidadãos a falar, escrever, alvitrar ou comentar a forma de indignação mais utilizada nos últimos tempos em Portugal: o regresso do programa A Tua Cara Não Me É Estranha.
Minto, pronto, piadinha fraca para sacudir o desconforto. Trata-se, evidentemente, da utilização do Grândola, Vila Morena como instrumento de combate político, interrompendo discursos ou funções públicas dos nossos bem-amados governantes.
É uma excelente ideia, devo dizer. Todas as canções têm uma função e as de combate são mesmo para ser usadas. O Grândola.. parece-me uma escolha evidente e eficaz - excepto quando o coro que protesta desafina em demasia ou o ministro Miguel Relvas se junta à cantoria.
A questão de fazer da canção um hino já não me diz tanto. Prefiro a guerrilha, a performance. Mas como bem viu quem esteve na rua no passado dia 2, a coisa arrepia. E foi bem escolhida: podemos não ter concordado com as posições políticas do seu autor (algumas de um radicalismo e intolerãncia delirante) mas não lhe podemos negar o génio. Digamos, apenas por analogia, que o Sonho de Menino dificilmente obteria os mesmos resultados.E o facto de a canção ter sido um dos sinais para a liberdade é transversal e actual.
O poder das canções de combate é incomensurável e prático. Desde a literalíssima A Cantiga É Uma Arma até o protesto dançável de Free Nelson Mandela, dos Specials, vai um mundo de intenções e vontades concretas mas que começavam e acabavam onde eram ouvidas. O que mais me maravilha nesta recuperação do tema de José Afonso é a sua utilização no terreno, servindo para interromper com força e elegância uma voz que não faz sentido.
Tanto eu gostei da ideia que gostaria de aplicá-la ao meus dias e ao que sinto. Esta é a minha utopia, senhoras e senhores: um tipo está só, lamentando os lados maus da vida - falta de dinheiro, de emprego, amores que se perderam - e começa a abandonar-se aos pensamentos mais tristes. Nessa altura - zás! - um coro vindo de dentro do coração começa a gritar o Grandola Vila Morena para evitar que um gajo se arme em parvo. Um grupo convicto de micro-seres, teimosos e decididos a calar as inanidades que nos vêm à cabeça para recomeçar com a vidinha, que não há tempo a perder.
Dava tanto jeito. Mais do que aqueles bombeiros que se vêem num reclame qualquer e que surgem para apagar as más digestões. A sério: grandolar o coração evitava perdas de tempo e, no limite, textos como este. Quem sabe, pode ser que um dia ainda oiça cá dentro os famosos passos com que a canção começa. Até lá, só o silêncio e o eco estúpido de mim próprio.
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