Domingo, 22 de Julho de 2012

Os pais vivem para sempre

Doce, salgado.

Vermelho, verde.

Um a dizer sim, outro a dizer não.

O norte sempre em direcções opostas.

Os dois errando. Provavelmente como sempre acontece. Pais sendo pais e filhos sendo filhos.

Mas as diferenças a desaparecerem ali por responsabilidade da doença. Passados tantos anos. Os dois a melhorar aos olhos de cada um, à frente de toda a gente. A aproveitar a oportunidade. Mudanças imperceptíveis para os outros. Pela primeira vez o norte a não nos confundir.

Os dois percebendo, finalmente, que a história não tem que ser má só porque tem alguns capítulos menos conseguidos.

 

O seu nome a ouvir-se nos altifalantes, mandando-o para a triagem. Enquanto percebemos o medo um no outro. Sem nos conseguirmos enganar. Resignados. A ouvirmos na nossa cabeça comentários antigos: " Não podem negar que são pai e filho". Iguais. No mesmo norte recente. Ele dizendo que está tudo bem e eu que vai ficar. Confortando-nos. A trocar frases batidas. A dizer pela enésima vez que é desta que tudo vai passar. Consentindo a mentira que nas Urgências dá pelo nome de esperança.

 

Ambos apanhados. Renunciando à lógica. Solidários com as lágrimas dos outros.

Eu a querer ouvir o habitual, que o não sei-quantos teve uma coisa parecida e que ficou bem. Cada caso sendo um caso. A concluir que quando é com os nossos tudo é diferente. Aliviado por não ser maligno. Respeitando-lhe o sofrimento e garantindo-lhe que sei que as dores são suas, que não me esqueci que dói.

Sem me lembrar desses dias, mas sentindo-o a levantar-me no ar orgulhoso. Sem precisar de dizer um ao outro que gostamos. Em silêncio. Eu a dizer à enfermeira e aos médicos: "Eu sou o filho".

A desejar conquistar a pulseira vermelha para ser mais rápido.

A minha mulher a poupar-me. Eu a confirmar-lhe, mais uma vez, que sei que dói, mas que tem que insistir. A tentar pô-lo bem-disposto, invejando-lhe a morfina: "Bem dividida dá para os dois!". Ele sorrindo às metades. Porque nem ele se sente inteiro. 

 

Aproveito para olhar para as suas mãos, recordando-me que ele sempre as teve grandes. Mas acho que isso acontece com todos. Os pais têm mãos grandes e vão viver para sempre. Certo?

Apesar de, ultimamente, as mãos do meu pai já não serem tão grandes como costumavam.

As suas dores afinando com as dos outros. As forças a escaparem-lhe. As horas a passarem:

 

" Vai ter que aguardar um bocadinho". 

 

Raio X. TAC. Análises.

 

" Vai ter que aguardar um bocadinho". 

 

Sala 3. Cá fora a luz vermelha acesa.

 

Radiações

Não entrar quando a luz estiver vermelha

 

Não abrir!

Sala de trabalho

 

Um televisor marca Sanyo desligado. Cadeiras velhas. Mais um caixote do lixo cheio de pacotes de sumos de fruta daqueles que se levam para evitar quebras de tensão e fraquezas. Conseguiria chegar, facilmente, ali de olhos fechados. A minha mulher a poupar-me.

Não há dinheiro. Não há tempo. Eu a dizer: "Eu sou o filho".

Eu não dando parte de fraco, sem vacilar, justificando as dores insuportáveis. 

A ler tudo à nossa volta como se a nossa vida dependesse disso:

 

5 de Maio dia mundial da higiene das mãos

 

Planta de emergência

Você está aqui

 

Extintor E-6P Standard

Referência 005059

 

Em condições de responder a qualquer pergunta sobre o espaço circundante.

Capaz de salvar a vida a todos: especialista em regras de segurança e higiene hospitalares. 

Apavorado com a ideia de os pais poderem não viver para sempre. A prometer-me que penso nisso depois. A repetir para me distrair:

 

 

5 de Maio dia mundial da higiene das mãos

 

 

A não aceitar que as mãos do meu pai estejam mais pequenas. Isso eu não posso aceitar! Mas vou aguardar um bocadinho. Enquanto isso elaboro uma nota mental:

 

 

Avisar que o Extintor E-6P Standard, referência 005059, que está no corredor onde é a sala 3, tem a validade a terminar.

 

 

Oito horas depois saímos com novas esperanças. Eu sem ter dado parte de fraco. Preparado para a próxima chegar às salas dos exames de olhos fechados.

As melhoras a todos!

 

 

 

P.S1: Passou bem a noite. E está animado. Continua a não querer dividir a morfina, mas os sorrisos já são maiores. O norte, esse, continua no mesmo lugar. E eu estou cheio de vontade de o levantar no ar, orgulhoso.

 

P.S2: Não era preciso isto tudo para confirmar que gostávamos um do outro.

publicado por Carlos M. J. Alves às 11:56
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