Perdoem-me este quadro a preto e branco, mas entre o cinismo e a ingenuidade, escolho a segunda. Prefiro escolhas ingénuas a grandes análises problematizantes. Já me embrenhei no campeonato das problematizações, sim, já gastei muita saliva e muito teclado de computador a pôr entraves a tentativas de tornar isto um lugar mais aceitável, habitável e transmissível para os novos. Mas deixei-me um pouco disso e espero não voltar à condição. Não me peçam por exemplo para não acreditar em qualquer gesto de solidariedade pessoal e social. Não me enredem em problematizações sobre "o dinheiro todo e os interesses que estão por detrás das organizações humanitárias". Não. Por favor. Não me digam que pedir melhores condições para os pobres é "um desporto da burguesia bem pensante". Deixem-me ser crédulo e estar do lado de quem faz. Quero morrer criança, como a Agustina. Acreditando que aquilo dos contos de fadas pode existir um pouquinho na vida de todos os dias.
Sim, prefiro enganar-me a aderir ao cinismo, essa prisão cada vez mais perpétua para tanta e tanta gente generosa mas bloqueada. Acredito na prudência, que é outra coisa. Mas numa prudência que quer construir, não aquela que paralisa. Não a que passa a vida a colocar entraves. Não a que azeda a mais genuína das intenções. É um pouco como dizia o Ferreira Fernandes no outro dia, a propósito daquela iniciativa de um conhecido festival sobre os sem-abrigo que "davam" acesso à internet, muito criticada pelos fóruns: "Entre os chiliques dos apóstolos do dever ser e os dadores de soluções, mesmo que transitórias e pueris, estou com estes". Eu também estou com quem tenta uma solução, mesmo que contingente, mesmo que com fragilidades e flancos abertos. Com quem faz vídeos sobre os senhores da guerra, mesmo que estes já tenham desaparecido do mapa, com quem denuncia crimes contra gente indefesa, mesmo que depois se venha a saber que recebeu fundos de organizações inacreditáveis. Estou com aqueles que atravessam a rua para ajudar um cego, mesmo que depois o cego seja um falso cego e acabe a rir-se na cara deles. Como tantas vezes acontece.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.