O fenómeno é comum e não perdoa. Pode resumir-se assim: o cidadão está tranquilamente embarcado na sua vidinha e sem que nada o anuncie ou preveja – paf!, leva com o passado afectivo na cabeça. Este acontecimento pode revestir-se de várias formas: um rosto reconhecido, uma música antiga, um cheiro familiar, ou, para os mais proustianos, um bolo seco. O resultado pode variar desde um simples suspiro (“ah, belos tempos”), uma rejeição (“que besta que eu era!”) ou o puro e duro embasbacamento. Quando este último acontece – como foi no meu caso, que contarei a seguir – só um conselho: se embasbacar não conduza.
Passou-se isto durante o simpático trânsito de uma Lisboa que ainda acorda e que acorda geralmente de mau humor. Entre o tráfego ensonado, olhar ainda por nascer, a telefonia do carro faz o favor de anunciar: “E agora, uma memoria musical: Gabriela Schaaf, e Leva-me ao cinema.” Ora, meus amigos: aos 15 anos eu estava perdidamente apaixonado por Gabriela Schaaf: a voz, os olhos, as epaulettes correctíssimas e oh so eighties. Por ela fiz a primeira das muitas figuras de urso que iria fazer por causa de uma mulher (e de que nunca me arrependi): levantei-me de madrugada para estar na primeira fila do cinema Nimas, onde Júlio Isidro emitia em directo a sua Febre de Sábado de Manhã. Nesse dia, Gabriela iria cantar e eu tinha de lá estar. Estive; e num gesto em que ainda hoje me pergunto onde fui buscar as forças e a coragem, subi ao palco depois das canções e fui pedir um autografo. Deu-mo, com um sorriso e dois beijos. Regressei a casa a flutuar e com a sensação que o filosofo DiCaprio tão bem descreveu em Titanic: “I’m the king of the world!”
Não sou propriamente um tipo saudososista ou mesmo nostálgico. Acredito no hoje perpétuo e estou grato por viver agora mesmo, neste tempo. Mas que certas coisas afagam a alma, ah isso afagam. Por isso mesmo, consigo ver agora com maior condescendência o amor que as jovens teenagers (e em particular a minha filha) nutrem por um grupo de rapazolas com cara de imbecis que se chama One Direction. Cantam o que parecem – um pop desenxabido mas eficaz – e fazem sonhar as meninas (em particular a minha filha, que escreve neste momento uma fan fiction e cuja conversação se tornou monotemática). Ao principio indignei-me: um pai com tão bom gosto, um educador da classe melómana e ela faz-me isto? Mas a Gabriela devolveu-me à realidade: precisamos de passar por isso. Esta entrega desmedida e absurda prepara-nos para outras que mais tarde nos irão, com sorte, atravessar a vida.
Anos depois também ela fará a sua arqueologia afectiva e se enternecerá com a péssima música que estes rapazolas fazem. E eu ficarei contente. Por isso, rapazes do One Direction: não abram essa carta sem remetente – ela está armadilhada e fui eu que enviei. Mas isso foi antes: agora queria mesmo dizer-vos obrigado. E um beijo, Gabriela!
para a minha filha Leonor
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