Quarta-feira, 16 de Novembro de 2011

Poemas de Shawn Corey Carter por Jay-Z

Nunca ninguém me perguntou porque é que gosto tanto de hip-hop. Ainda bem. Há quem ache que é uma pancada, houve quem achasse que era uma fase, e há meia dúzia de pessoas com quem partilho a afinidade. Mas se tiver que explicar porquê, sou capaz de me defender com os versos do Jay-Z da mesma maneira que um gótico justificará a cor de eleição com alusões a Baudelaire ou Rimbaud. Tanto eu como o gótico arriscamos fazer figuras tristes (mais o gótico) em nome de um universo que tem tanto de simbólico, figurado e caricatural como de sério e culturalmente relevante. Vamos a isso, então. 

 

A poesia é todo um compêndio de cabecinhas ruminantes e imaginativas acerca de problemas, da ausência deles, dos problemas dos outros, de coisas vazias, de coisas entupidas de significado, do que se passa ou do facto de não se passar nada. Às vezes é tudo isto ao mesmo tempo, como o comprovará uma pesquisa no Google por teses de doutoramento dedicadas à presença do não-metafísico na dimensão material da obra de João Cabral de Melo Neto. Se estiverem prestes a desistir deste texto, pensem antes numa daquelas séries televisivas que descrevemos como sendo "multi-camadas". Exigem um segundo, um terceiro, e um quarto visionamento. E as recompensas lá vão chegando, reforçando o nosso dom para o auto-elogio contido. Com Jay-Z, e o hip hop em geral, acontece um pouco a mesma coisa. Se aquilo - a música de pretos - nos bater à primeira, e se prestarem atenção às palavras, vamos descobrir um novo idioma, que pode ou não ser exclusivo do rapper. Pode também ser um idioma absolutamente idiota. Ou pode ser um idioma indecifrável que pura e simplesmente soa bem. Quem nunca citou Herberto Helder por causa das suas qualidades telúricas, que atire a primeira pedra. Qualidades telúricas são algo que o leitor encontra sempre que um escritor faz alusões a coisas próximas dos nossos pés, mas não as escreve por forma a podermos interpretá-las honestamente por aquilo que são: um vestígio ecoante de nada. Ah, e filisteu é o tipo que diz estas merdas.

 

Mas bom, estas coisas também acontecem no hip hop. Umas são mais divertidas do que outras. A poesia de Jay-Z, quando lá chegarmos e falarmos a mesma língua que ele, é surpreendentemente reconfortante e próxima do comum mortal. Se tivermos sido toxicodependentes, vamos desejar ter comprado droga a um tipo tão porreiro. Se formos desbocados na forma como verbalizamos sentimentos em relação às pessoas e ao mundo em geral, vamos encontrar alguém com um nível idêntico de bazófia. Se formos milionários, vamos descobrir que bebemos o mesmo champanhe ou que somos vizinhos no Lago Como. Finalmente, se gostarmos de banda desenhada, vamos descobrir um novo super-herói preto. Em todas estas narrativas há uma grandiloquência algo embaraçante e desligada do modelo de Estado-Providência no Sul da Europa (RIP), mas existe também uma micro-narrativa que é a nossa, por muito distantes que estejamos da vivência do poeta. E estamos. Aliás, como qualquer poeta proprietário de um Maybach que se preze, Jay-Z praticamente não fala de ninguém a não ser de si. Mas há momentos absolutamente gloriosos na narrativa egocêntrica de Shawn Carter que importa destacar e incorporar modestamente na nossa própria história. Seguem-se três deles.

 

If your having girl problems I feel bad for you son
I got 99 problems but a bitch ain't one

I got the rap patrol on the gat patrol

Foes that wanna make sure my casket's closed
Rap critics that say he's "Money Cash Hoes"
I'm from the hood stupid what type of facts are those
If you grew up with holes in your zapitos
You'd celebrate the minute you was having doe
I'm like fuck critics you can kiss my whole asshole
If you don't like my lyrics you can press fast forward

 

Jay-Z é um homem que tem 99 problemas. As mulheres não são um deles. É mais ou menos o oposto de Rui Pires Cabral, que tem 99 problemas e todos eles parecem estar relacionados com amores. Nestes 10 versos, Jay-Z lamenta os problemas amorosos de Rui Pires Cabral e desde logo esclarece que não padece do mesmo mal, resgatando o ouvinte do habitual mergulho num poço sem fundo. Os 8 versos seguintes são metáfora do ghetto atrás de metáfora do ghetto, mais fáceis de compreender se soubermos que gat é uma pistola, foes são os inimigos, money cash hoes é o rótulo a que colam qualquer preto bem sucedido no rap norte-americano, hood é o sítio onde o preto viveu, e whole asshole é a totalidade do ânus de quem discordar do Jay-Z. Quem não gostar, diz-nos, pode passar à frente. 

 

Showed love to you niggas
You ripped out my heart and you stepped on it
I picked up the pieces
Before you swept on it
God damn this shit leaves a mess don't it
Shit feelin' like death don't it
Charge it to the game
Whatever's left on it
I spent about a minute
Maybe less on it
Fly pelican fly
Turn the jets on it
But first I shall digress on it
Wasn't I a good king?

[Kanye West]
Maybe too much of a good thing, huh?

[Jay-Z]
Didn't I spoil you?
Me or the money, what you loyal to?

[Kanye West]
Huh, I gave you my loyalty

[Jay-Z]
Made you Royalty and royalties

[Kanye West]
Took care of these niggas lawyer fees

[Jay-Z]
And this is how niggas rewardin' me

[Kanye West & Jay-Z]
Damn

 

A poesia é métrica. É, de facto, mas essa métrica é também oralidade. Agora peçam a José Tolentino Mendonça, muito honestamente, um dos meus poetas preferidos a seguir a Jay-Z, Notorious B.I.G. e Ghostface Killah, para recitar um poema que acabou de escrever. É possível que o senhor trema como se estivesse a dar a primeira missa na Igreja de Santa Isabel. A grande diferença entre Tolentino e Jay é que este último não deverá vir a editar um "Poemas de Jay Z por Luís Miguel Cintra". É o homem que escreve e é ele que vai cuspir aquilo a seguir. Digo cuspir porque os rappers descrevem o acto de recitarem os seus poemas como "spit verses", uma imagem forte cuja origem desconheço, mas suspeito não se encontrar na época vitoriana. O que acontece nesta faixa de colaboração entre Kanye West e Hova (alcunha de Jay-Z, somos amigos) atinge proporções épicas a partir do minuto e quarenta e seis segundos. Os versos falam dos traidores a quem Hova pagou os charros, as garrafas de Cristal e as custas judiciais durante anos (toda a gente tem um familiar assim). Mas a forma como Kanye completa os pensamentos de Jay-Z e a coisa evolui a partir daí para a tríade loyalty-royalty-royalties é toda uma masterclass de poesia. 

 

I got this Spanish chica, she don't like me to roam
So she call me cabron plus marricon
Said she likes to cook rice so she likes me home
I'm like, "Un momento" - mami, slow up your tempo
I got this black chick, she don't know how to act
Always talkin out her neck, makin her fingers snap
She like, "Listen Jigga Man, I don't care if you rap
You better - R-E-S-P-E-C-T me"
I got this French chick that love to french kiss
She thinks she's Bo Derek, wear her hair in a twist
My, cherie amor, t£ est belle
Merci, you fine as fuck but you givin me hell
I got this indian squaw the day that I met her
Asked her what tribe she with, red dot or feather
She said all you need to know is I'm not a ho
And to get with me you better be Chief Lots-a-Dough
Now that's Spanish chick, French chick, indian and black
That's fried chicken, curry chicken, damn I'm gettin fat
Arroz con pollo, french fries and crepe
An appetitite for destruction but I scrape the plate
I love
Girls, girls, girls 

  

Jay-Z editou o tema "Girls Girls Girls" numa fase da vida em que ainda não adormecia ao lado de Beyoncé, o que ajuda a compreender a paleta cultural e amorosa aqui exposta. Não será o seu melhor poema, mas é um dos mais divertidos. E alarga-nos as vistas. Num país como o nosso, onde o marialvismo tem Rodrigo Moita de Deus e Victor Espadinha como representantes credíveis, o sexismo mundividente demonstrado por Jay-Z assume um tom inspiracional que, se estivermos dispostos a ouvir com atenção, fará de nós o João Garcia da discoteca mais próxima, em Lisboa, Miami ou Lloret Del Mar. Basta abrirmos o coração e aceitarmos as palavras de um poeta maior.

publicado por Vasco Mendonça às 23:46
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1 comentário:
De Anónimo a 13 de Setembro de 2012
Where a bitch tellsa like I luv ya?

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