A graça, diz-nos a cultura cristã em que crescemos, não era qualquer coisa que dependesse nós. Era dada, em casos especiais, pelo Criador. E aquele que tinha a extraordinária felicidade de ser agraciado distinguia-se dos demais que se limitavam a agir de acordo com os seus instintos naturais (vale a pena lembrar aqui, obviamente, “A Árvore Da Vida”).
A graça era, pois, bênção. A bênção de não ter vistas curtas. De se elevar acima dos mais primevos ímpetos animais. De agir em nome do bem, dos outros, da totalidade, da vida. De ter esse traço de divindade que libertava o agraciado da contingência do eu, dos limites da individualidade, da circunstância de ser esta coisa para nascer e morrer.
A graça, hoje, significa outra coisa. Já não nos é concedida pelo Criador, mas pelo patrão, o empregador que nos pede que trabalhemos de graça (não será mera coincidência homónima. Por debaixo da palavra, está lá o mesmo apelo a agir não em nosso benefício, mas pelo de outrem). E a graça 2.0 , lamentavelmente, vulgarizou-se nestes dias de que já aqui falava o Nuno.
A propósito da crise que se apegou ao nosso tempo qual nome de baptismo, todos os dias há mais alguém que trabalha de graça. Sobretudo na área desses tipos giros da cultura, que basicamente escrevem umas coisas e devem fazer o que fazem por amor à arte ou, doutro modo, metiam-se mas era a fazer um trabalho a sério, tipo gestão ou consultoria.
Escrevem-se crónicas de graça, críticas de graça, entrevistas de graça, guiões de graça. Fazem-se locuções de graça, fotografias de graça, produções de graça. Canta-se de graça, representa-se de graça, cede-se os direitos de graça porque, sem isso, não há pão para malucos e se ninguém vir o que você faz, afinal, onde está graça.
Isto, dizíamos, começou nos patrões, mas não é um problema deles; é dos agraciados. Os sonhadores que acham que, quando isto melhorar, vão começar a receber. E que, depois disso, serão aumentados. E que alguém, algures, ao longo deste tempo, está a reparar que eles estão a trabalhar de graça e vai reconhecer-lhes e recompensar, de algum modo, a dedicação.
Não vai.
O agraciado deve perceber logo o truque. Geralmente, falam-lhe em oportunidades, em aprendizagem, no luxo e na honra que será estar ali a produzir, ao lado deles, de graça. No fundo, o agraciado ainda tem de agradecer tudo o que lhe está a ser dado e envergonhar-se de, por um momento, ter pensado no vil metal. Que materialista, este agraciado. E tão jovem, Jesus. No que nós nos tornámos. Isto a culpa é nossa, diz o patrão no almoço de patrões, que os educámos assim.
O que o agraciado tem de compreender é que alguém está a ganhar dinheiro com o trabalho dele. O chefe, o administrador, o sumptuoso proprietário da marca que anuncia no produto que o agraciado concebeu de graça e que paga um décimo do que costumava pagar porque isto, sabem, não há dinheiro.
Curiosamente, o jornal continua a chegar ao mesmo preço ao consumidor final. Tal como o disco, o filme, a televisão, o espectáculo. O que é estranho porque, em tempos imemoriais, as pessoas que os faziam eram pagas. Não sendo, como não são, ou sendo pagas por uma percentagem residual do que outrora recebiam, como também são, isso deveria reflectir-se, algures, no custo final da coisa. Mas não reflecte. E isto leva-nos ao grande mistério do século XXI: esse dinheiro que é pago e ninguém recebe para onde vai?
Como há cada vez mais batalhões de ingénuos a trabalhar de graça, sobra cada vez menos espaço para quem não aceita ser agraciado pela bênção patronal da oportunidade e da honra e do espírito de sacrifício.
E assim vamos todos lentamente ao fundo, enquanto os empreendedores empregadores escrevem livros sobre como ter sucesso e esbanjam sabedoria e visão em conferências dedicadas ao tema: como sair da crise em doze passos suaves.
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