Quarta-feira, 5 de Outubro de 2011

Mulheres

Um tipo entra no Rock in Rio para ver Stevie Wonder e dá-se conta que entrou no Shopping in Rio. Eram mais de 72 marcas a piscar-nos o olho dentro do recinto/parque de diversões: a montanha-russa Chilli Beans (óculos de sol), a roda gigante Itaú (banco), os camarotes Coca-Cola (remédio para a ressaca), a Rua do Rock com mais marcas e voyeurs de montras que Oxford Street. No palco, tocava ainda Ke$ha, cujo uso de um cifrão no nome não chega para desvelar o mau gosto da sua música ao vivo – um sucedâneo de Lady Gaga, um ídolo teen com mais maquilhagem e guarda-roupa do que afinação. Ela gritava: “Let’s party Rio”, e sentia-me numa discoteca ao ar livre, em Benidorm. Ke$ha guinchou o tempo inteiro enquanto os visitantes do Shopping in Rio esperavam em filas para receber um brinde (T-shirts, óculos de sol, poltronas insufláveis) ou avançavam como peregrinos hipnotizados para as barracas de cerveja (Heineken) ou de comida (Bob’s – hambúrgueres de franchize). Rock in Rio: uma espécie de Planet Hollywood + Hard Rock Café + Disneyland. Uma espécie de delírio futurista em que seremos alimentados, vestidos e entretidos por uma mega empresa universal.

 

O Rock in Rio não deixa de ser um assombroso feito de logística, trabalho, entretenimento e money making – a economia da cidade terá recebido cerca de 350 milhões de euros. Mas o Rock in Rio, que recebeu cem mil pessoas por dia, parece querer reduzir-se ao mantra contemporâneo da felicidade imediata: coma um hambúrguer, compre uma T-shirt, use o seu telefone para fazer fotos, receba coisas grátis e veja alguma celebridade no palco, não importa qual, até pode ser Ke$ha.

 

Não consigo encontrar apelo, beleza ou sensualidade em Ke$ha ou no Rock in Rio. São robots da adoração colectiva, produtores chatos de $, euros, reais e dólares, são chapa 5, produto mastigado, empacotado e aprovado para todas as idades. A ideia que tudo é comprável e a uniformização das coisas e das pessoas deixa-me aborrecido. Especialmente a uniformização de algumas mulheres. O Rio, capital das mulheres bonitas – olha uma loira alta e descalça num skate, olha uma mulata a cair na água, olha a executiva tão segura nos seus saltos –, o Rio que já criou mais poetas amantes do que qualquer outra cidade, também se vai deixando levar pelas capas das revistas, os vídeos MTV, o Photoshop, a lipoaspiração e o botox. Falo da uniformização dos corpos e das expressões faciais, uma traição à génese e ao milagre deste lugar: a diversidade, a mistura, a criatividade, a possibilidade.

 

Depois das roliças dos quadros renascentistas, das pin-ups pós II Guerra ou das magrelas com ombros de cabide Calvin Klein, surgiram agora as mulheres Fruta – tão trabalhadas como uma melancia esculpida para efeitos decorativos num buffet de hotel. Podem ter implantes nas mamas e na bunda, podem ter botox em vez de rugas sorridentes, podem ser tão bem desenhadas como uma heroína de BD, podem até vestir-se como Ke$ha, mas arriscam-se a ter o mesmo sabor plástico do Rock in Rio, provocando a mesma sensação descartável, rápida, que não deixa marca.

 

É por isso que peço a todas as mulheres que acreditem que uma estria, uma mancha, um peito descaído que não se pareça com uma perfeita bola siliconizada, enfim, que muitas das coisas que vocês insistem em eliminar com uma ferocidade castigadora, não vos faz ser menos mulheres do que aquelas que injectam produtos na testa e jejuam e se levantam às cinco da manhã para fazer ioga ashtanga. Acreditem, há mais verdade e tesão numa mulher de corpo vivido do que numa mulher de corpo encomendado.     

publicado por Hugo Gonçalves às 02:36
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De sandra a 6 de Outubro de 2011
Gostei muito de reencontrar a sua escrita. Reencontrei através do Terceira Noite. Cumprimentos desta fã
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